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25 de jul. de 2014

Transportabilidade linguística

Transgeneralização, criado por Wellington de Oliveira Teixeira em 23-07-2014.
Transgeneralização, criado em 23-07-2014.
Liberem-no com um gesto demasiado violento,
façam saltar os estratos sem prudência
e vocês mesmo se matarão, encravados num buraco negro,
ou mesmo envolvidos numa catástrofe, ao invés de saltar o plano.
O pior não é permanecer estratificado – organizado, significado, sujeitado –
mas precipitar os estratos numa queda suicida ou demente,
que os faz recair sobre nós, mais pesados do que nunca.

(Giles Deleuze e Felix Guattari — Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. v.3, p.23-24)


Línguas de ascendência latinas são eminentemente machistas perante a questão de gêneros. A nossa também. Dizemos: as rosas e os cravos, eles são lindos. Viu? Diante de palavras com gêneros diferentes priorizamos o masculino. Parece natural, mas linguagem é algo criado para a comunicação, logo qualquer padronização vem das relações sociais existentes.

A língua permite atravessamentos nas portabilidades. Da antiga preponderância biológica e genética do XY ou XX, constituímos valor para a manifestação subjetiva onde estes elementos não possuem determinação no gênero, socialmente vivenciado.

Não tão comuns como na língua inglesa*, há substantivos que possuem uma única forma indistinta (geralmente chamados de comuns de dois**) que necessitam de artigo (o, a, um, uma) ou outros elementos textuais para determinar o gênero: anarquista, camarada ou colega, colegial ou estudante, fã, imigrante, indígena, doente, suicida. Há profissões — e suas relações — que encampam a mesma ideia: agente, dentista, intérprete, jornalista, taxista, policial, servente, gerente, chefe, cliente.

Poderíamos chamá-los de unissex, termo criado na década de 1960, para dar conta das práticas dos hippies de abarcarem elementos transgêneros em função das ideias de compartilhamento universal: cabelo, roupa, acessórios, dentre outros, não deveriam ser determinantes de sexualidade. Se na época eram posicionamento contra o estabelecido ocidentalmente, tornou-se algo comum, adotado até hoje.

A proposta não visa — como tenta induzir o livro UNISEX – A criação do ser humano “sem identidade”, de Enrica Perucchietti e Gianluca Marletta — à constituição de um imaginário global influenciador das escolhas das massas ou demolir as identidades sociais, religiosas, políticas ou culturais. Que dirá a absurda correlação com a desintegração da instituição familiar para criar o consumidor perfeito, facilmente manipulável***.

Em contraposição a esse nível de preconceitos, a atual linguagem proporciona um apontamento diferenciado, uma abertura clara na fundamentação da comunicação: é preciso transpor a predeterminação, pois não há como obrigar ninguém a se sentir como gostaríamos. Até há, e infelizmente a história comprova, a custa de muitos seres infelizes, a formação dos guetos sociais.

Para ilustrar a questão da transposição dos gêneros, vou utilizar uma proposta bem humorada do DCE da Uff que recorre a uma generalização do masculino quando a ideia implica em aumentativo ou força: Bandejão, a bandeja transgenérica. A maioria das pessoas, por força do hábito, esquece que aumentativo de bandeja é bandejona e não bandejão. Mas produzimos a transposição do seu gênero para demonstrar ampliação e criamos o transgênero A bandejão (em contraposição a bandejona), por ser inaceitável, transformou-se em O bandejão - o bandeja agradece.

Um costume que não aprovo — o de se realizar questões de múltiplas escolhas tendo no enunciado Marque com um X a opção… — foi tão usado, no período em que se queria reprodutores de conhecimento e técnicos especialistas e não pessoas pensantes, que se perpetuou. O tal X, porém, acabou sendo adotado para algo muito interessante, que vejo com muito bons olhos: seu uso como elemento genérico de desgenerização por inclusão. Se antes excluíamos o feminino, agora ele introduz o conceito de universalização, de participação geral e todxs estão convidadxs a usá-lo.

Wellington de Oliveira Teixeira, entre 24 e 25 de julho de 2014.

* Com ascendência da língua falada pelos povos germânicos, o idioma nascidos nas ilhas britânicas conhecido como anglo-saxão, o originalmente Englisc (ou língua dos anglos") deu origem ao inglês atual.

** Cuidado para não confundir substantivos comuns aos dois gêneros com substantivos sobrecomuns (que apresentam um só gênero, como a criança, a testemunha, a pessoa; ou o gênio, o anjo, o algoz) ou epicenos (nomes de animais que precisam do macho/fêmea para distinguir (a cobra, a formiga, a gaivota; ou o condor, o crocodilo, o gavião).

*** A visibilidade da questão dos gêneros não biológicos, antes completamente escondida dentro dos armários, passou a integrar a agenda mundial. Banheiros unissex, não separados, dentre outras transformações, criaram um reboliço imenso nos setores mais conservadores. O que poderia ser apenas uma prática inclusiva transformou-se em uma nova chamada à guerra pelos valores tradicionais, de modo similar aos racistas americanos da Klu Klux Kan (KKK) — cujo objetivo era impedir a integração social dos negros recém-libertados e a universalização dos direitos de cidadãos como adquirir terras e votar — apelam para a destruição dos valores e da família.
A história — quase sempre esquecida — se repete e fundamentalistas reaparecem com outras roupagens.

22 de jul. de 2014

Construtos

Construtos, criado por Wellington de Oliveira Teixeira em 22-07-2014.
Construtos, criado em 22-07-2014.

São os signos da linguagem que deram origem às ciências abstratas.
Uma qualidade comum a várias ações engendrou as palavras vício e virtude;
uma qualidade comum a vários seres engendrou as palavras feiura e beleza.
Alguém disse um homem, um cavalo, dois animais;
em seguida, alguém disse um, dois, três, e toda a ciência dos números nasceu.
Ninguém tem ideia de uma palavra abstrata.
Notaram-se em todos os corpos três dimensões, o comprimento, a largura e a profundidade;
tratou-se de cada uma dessas dimensões, e daí todas as ciências matemáticas.
Toda abstração não é senão um signo vazio de ideia.

(Diderot: O sonho de D’Alembert - Coleção Os Pensadores, p.280)
*


A estruturação de qualquer elemento exige alguns substratos comuns. Real ou imaginário, a percepção inicia o processo e o desejo o embasa. E essa tem sido uma questão que atravessa, literalmente, grande parte das áreas do conhecimento. Não há, de teorias a práticas, absolutamente nada que escape dessa formulação: somos fundamentalmente seres desejantes e por (e no) desejo produzimos cultura.

Alguns pensadores buscam apontar e visibilizar o processo de geração de cultura de um determinado grupo e a constituição de novos hábitos a partir dos interesses comuns. Outros, navegam na captura do desejo, na aculturação acrítica, onde a imposição mesmo que disfarçada a promove.

Da inicial necessidade de proteção básica da vida, criamos variações que chegaram até a não tão atual assim conquista de status, produzindo relacionamentos, objetos, linguagem, cerimoniais e determinantes ético-morais e religiosos. Todos são fabricados. Não são prévios, muito menos naturais. No entanto, pelo prolongamento da prática, acabamos por naturalizá-los e normatizá-los. O normal passa ser a nossa forma de falar, de ser e de estar, então, os padronizamos.

Um dia encontramos um estrangeiro — migrante ou imigrante em nossas terras — e descobrimos a alteridade como possibilidade, depois do estranhamento. Pontuo, aqui, o início do fim da teoria da normalidade.

Aquele que se dispõe a observar ou avaliar as diferenças poderá se sentir atraído a aprender com a nova forma. Esse desejo, estimulador do contato, poderá viabilizar diálogos não intermediados pelo conhecimento prévio dos vocábulos. Gesticulações, referenciações aos objetos e práticas, seguidos da palavra usada por cada um para o mesmo, dicionariza a relação.

Em pouco tempo, poliglotas constituídos dialogam e referenciam um mundo novo, cuja absorção dos novos padrões culturais é facilitada. Pode parecer complicado, mas é um fato corriqueiro e diário.

Estudiosos como Piaget apontaram a graduação na construção da inteligência utilizando o conceito de camadas sobrepostas e apontaram que – como em qualquer construção – uma absorção não concluída ou parcial poderia gerar as rachaduras na estrutura. Apesar de, em regra, incapazes de fazer ruir o edifício, impedem um avançar mais pleno da manifestação das capacidades individuais. Apontaram mais além, o processo explica a radicalidade da capacidade humana de adaptação.

Pense na maturação social, onde uma criança amplia suas referências da família e vizinhos, para a escola e para o mundo: conteúdos, costumes, interesses, conceitos e práticas diversos se presentificam e põem em xeque a unicidade dos valores recebidos. Por curiosidade, por avaliação, por necessidade e por participação, muitos são adotados momentaneamente ou absorvidos. O universo pessoal é expandido.

Esse processo é análogo aos estudos realizados por pesquisadores (cientistas ou não) no seu caminho de descobertas, de confirmações e refutações dos conceitos e valores vigentes. A expressão pensar fora da caixa denota esse conceito.

As ciências sociais e psicológicas estão incluindo a incapacidade de lidar com a questão da variação, da mudança, do aprimoramento ou da transformação como uma das causas da constituição da rigidez nas pessoas.

Seja pela radicalização ou pela inflexão, o mundo daqueles que se agarram ao constituído e determinado como padrão mostra o quanto as construções internas são frágeis. O terror à possibilidade de ruir o arcabouço por conta da troca ou retirada de uma peça, faz com que a rejeição total, intransigente e determinista de um modelo crie, não uma pessoa, um elemento repetidor, impedindo a evolução e o processo de individualização e realização pessoal.

O construto chamado fundamentalismo está carregado dessa processual formalização, que ignora os efeitos do que ódios, agressões, distorções e torturas podem causar aos seres humanos em prol da modelagem comportamental e de pensamento. Sua sobrevivência exige seres docilizados, cujo potencial transformador seja encapsulado em formulações prévias, frases repetidas, posicionamentos irrefletidos mas seguidos à risca. Isso pode ser obtido pelo discurso manipulador ou pela ação direta dos aparelhos de repressão. Em ambos os casos, o resultado é único e triste: quem sofre seus efeitos clama por liberdade, mesmo que silenciosamente.

Wellington de Oliveira Teixeira, em 22 de julho de 2014.

* Diderot propõe a existência um nível organizacional da natureza, um verdadeiro sistema onde tudo está unido, uma cadeia contínua, das formas mais primitivas de organização da matéria até as mais complexas, nos domínios do humano.
Animado por um fluxo, como concebido por Heráclito de Éfeso (séc. VI-V a.C.), o universo é obediente às leis formuladas por Descartes para a matéria; é dinâmico e em permanente transformação, em vez de estático e criado como um conjunto de coisas fixas, como concebia a tradição aristotélica e escolástica cristã.

19 de jul. de 2014

A construção das ervas daninhas

Ervas daninhas, criado por Wellington de Oliveira Teixeira em 17-07-2014.
Ervas daninhas, criado em 17-07-2014.

Um lema mais apropriado para o nosso futuro está nas memórias do estadista Otto von Bismarck. Ao final de sua longa vida, ao refletir sobre o mundo à sua volta, ele tinha motivos para ser cético. Dono de um intelecto agudo e tendo trabalhado no centro da política europeia durante décadas, Bismarck testemunhara a repetição desnecessária de erros tão grosseiros quanto os que prevaleceram nos primórdios da exploração da Papua-Nova-guiné. Mas ele pensou que valia a pena escrever suas memórias, extrair lições da história e dedicá-las "aos [meus] filhos e netos, para que compreendam o passado, e como um guia para o futuro.".
(Jared Diamond — O terceiro chipanzé: a evolução e o futuro do ser humano, p.362)
A natureza produz perfeitamente um conjunto harmonioso de criaturas que, sem a interferência humana, estabelece o equilíbrio das relações.

Alguns dos seres valorizados hoje eram itens desqualificados em gerações anteriores, considerado impróprio, daninho. Porém, o desenvolvimento dos estudos a seu respeito localizou a sua participação nas interrelações necessárias. A descoberta da pura ignorância de quem estabeleceu o contrário: tudo tem o seu valor.

Não vou, pelo menos nessa reflexão, exemplificar para clarificar. Prefiro admitir a sua capacidade de avaliar elementos, situações de sua referência para, caso deseje, constatar as questões que apresento.

Mesmo assim, estabelecerei duas definições sobre o que é danoso:
  1. danoso é o preconceito, considerar sem avaliar, estabelecer sem identificar os limites clarificando a zona de alcance do que é falado;
  2. danoso é utilizar o desconhecimento, a ignorância como trampolim para extrapolar quaisquer considerações razoáveis em prol de si mesmo, de seus próprios valores, do controle social do seu círculo de convivência.
A natureza, como se apresenta atualmente, possui grande diferença relativa aos tempos primórdios. Sua transformação — que insistimos qualificar como evolução para nos considerarmos superiores — exigiu a adaptação às novas circunstâncias, a criatividade, a constituição de alianças anteriormente desnecessárias em prol da sobrevivência como um todo.

A desconstrução desses mecanismos e estratégias tem conduzido, por séculos, à valorização da prática da dominação e subjugo como prioritárias. Para conseguirmos concordâncias, plantamos ideias e constituímos argumentos para as tornarmos hegemônicas, em sua maioria utilizando a combinação desinformação e medo.

Desinformação não como ignorância. Desinformar como prática de desqualificar uma informação, cuja palavra que mais se aproxima na atualidade é manipulação. Fornecimento de pressupostos que induzem à falsa avaliação. Por conseguinte, à sua adesão, participação e propagação. Simplificando, a geração de reprodutores de discursos.

A homogeneização como ditadura do pensamento, da diversificação, do desrespeito às diferentes formas de ser e estar no mundo se constitui com a construção do perverso, do errado, do pecaminoso, do reprovável, do danoso: se eu quero o trigo, tudo mais se torna joio.

Esquecemos a lição da sobrevivência das espécies, inclusive a humana, onde toda extinção se propagou. A inexistência de um elemento qualquer gera consequências graves em toda a cadeia alimentar. Cada morte se propaga e reflete-se para além do ser atingido. O equilíbrio exige harmonias de contrários, que, sob esse ponto de vista, são apenas complementares.

Há uma infinidade de mundos, mas tudo é um único universo, o grande poema de um verso só: vida.

Wellington de Oliveira Teixeira, em 19 de julho de 2014.

* Para o meu povo, cada parte da terra é sagrada. Cada agulha brilhante de pinheiro, cada franja de areia, cada bruma nos bosques escuros, cada clareira e inseto a zumbir são sagrados na memória e na experiência do meu povo… O homem branco… é um forasteiro que chega à noite e tira da terra o que necessita. A terra não é sua irmã, mas sua inimiga… Continue contaminando o seu leito e uma noite você sufocará no seu próprio lixo.
(De uma carta enviada pelo chefe Seattle, da tribo duwanish de índios americanos, ao presidente Franklin Pierce, em 1855.)

18 de jul. de 2014

Fragmentos recuperáveis

Fragmentos recuperáveis, criado por Wellington de Oliveira Teixeira em 16-07-2014.
Fragmentos recuperáveis, em 16-07-2014.

Da Vinci sempre fora um tema embaraçoso para os historiadores, especialmente na tradição cristã. Apesar do seu gênio visionário, era um homossexual assumido e um adorador da divina ordem da Natureza, dois "crimes" que o colocavam em perpétuo estado de pecado contra Deus. Além disso, as bizarras excentricidades do artista projetavam uma aura admissivelmente demoníaca: da Vinci exumava cadáveres para estudar a anatomia humana, mantinha misteriosos diários em uma ilegível escrita invertida, acreditava possuir o poder alquímico de transformar o chumbo em ouro, julgava-se até capaz de enganar Deus criando um elixir que adiava a morte, e as suas invenções incluíam horríveis e nunca antes imaginados instrumentos de guerra e de tortura.
A incompreensão gera a desconfiança, refletiu Langdom.
(Dan Brown - Código Da Vinci - edição especial ilustrada, p.52)

Há quem reclame de tédio, mas quer apenas novidades mais ou menos — do tipo que não altera o status quo padrão: ir para novos restaurantes e casas de show, nova tendência da roupa (agora a calça tá mais apertada e colorida!); a gíria, cantor ou banda da moda.

Os retornos constantes de tudo que marcou época, mesmo com pequenas modificações, são a marca da falta de construções realmente novas. Mas, quem as quer realmente?

Sendo franco, acredito que, no fundo, poucos gostam das alterações radicais das rotinas, do desconhecido, do que exige um esforço para se concretizar. O incerto carrega, potencialmente, o medo em sua composição, daí a resistência. Mas, se houver vontade de avaliar, creio que se perceberá que, para contornar a questão, a cultura dominante promove sempre a aproximação com alguma antiga radicalidade que foi apropriada pelo sistema, como o foram as culturas limítrofes do skate, do surf, do rock. Os novos, controlados e lucrativos esportes radicais.

Não é difícil você encontrar expressões com a expressão inglesa new — como foi com o new hippie — para caracterizar o controle. O que era uma marca registrada de um modo de ser aventureiro, o velho jeans amaciado no corpo, surrado com o uso até tornar-se puído, tornou-se uma calça novinha, produzida com as mesmas características - com um preço justo, por isso, é claro: sua pressa foi atendida.

Em um mundo orientado para produtos ou orientado para clientes e não pessoas, o new você já virou padrão: renove-se! A questão que se apresenta é que a proposta não propõe a existência de nenhuma mudança real, são apenas enfeites e penduricalhos no velho manequim — que continua o mesmo de sempre.

Não gostamos do medo, mas deveríamos, mesmo sendo ele paradoxal: se a sobrevivência é impossível sem ele, a impotência se sustenta nele. E você fica entre um extremo e outro, deslizando em função dos acontecimentos e das emoções.

A ousadia na vida é algo tão sui generis que as pessoas já adotaram a expressão isso não é pra mim, quando confrontadas ou incentivadas a tentar.

Então, e essa é a proposta dessa reflexão, não se preocupe, ouse um pouco mais, deixe cair alguns pedaços. Um dia você reabsorverá grande parte dos fragmentos que ficaram dispersos pela vida — repletos de histórias e emoções que o contagiarão de revivências. Os outros, os que não importam de verdade, é melhor que realmente não voltem.

Mas haverá, certamente, haverá uma questão a que você será confrontado: reconstruir, renovar ou construir algo novo?

Wellington de Oliveira Teixeira, em 18 de julho de 2014.

* O código Da Vinci, como livro ou filme, permite aventura e descobertas. Mais ainda, pensar em inventividade: o mundo do explorador de possibilidades, Leonardo, é uma mostra do espírito humano em sua incansável busca por transformação, aperfeiçoamento e expressividade. Todos os códigos apresentados na obra são fragmentos que precisam ser questionados, avaliados e aglutinados para criar um painel completo. Crítica à perda de reverência pelo sagrado, afloram mais que às instituições religiosas ou práticas perversas individuais. Encantadoramente subversivo.

14 de jul. de 2014

Moitidis

Moitidi, criado por Wellington de Oliveira Teixeira em 14-07-2014.
Moitidi*, criado em 14-07-2014.

O Destino é uma sucessão inevitável de acontecimentos que conduz a vida
de acordo com uma ordem natural, onde nada que existe pode escapar.
Na mitologia grega, as três irmãs responsáveis por fabricar, tecer e cortar
aquilo que seria o fio da vida de todos os indivíduos eram as Moiras.
Seu tear chamava-se Roda da Fortuna que em suas voltas posicionam o fio do indivíduo
ora na parte superior, ora na parte inferior, explicando-se assim os períodos de boa ou má sorte,
o auge e o fundo do poço de todos nós.


Vamos admitir em um puro exercício de imaginação que houvesse um destino traçado para cada um de nós. Tracejado, indicando uma rota. O preenchimento dos espaços vazios ficando por conta das vivências, como o conceito de meta valorizado no mundo atual.

Lamento dizer que essa ideia tão sedutora apenas criaria uma ilusão de liberdade, de escolhas, de propósito.

Talvez influenciados pela morte inescapável ao final de qualquer trajetória, é isso que constantemente boa parte de nós utiliza como desculpa para minimizar a grande responsabilidade que é gerir, por si mesmo, a própria vida ou se livrar da carga de pensar na inutilidade de muito dos sacrifícios aceitos ou exigidos de si mesmo.

Criamos um moitidi, um destino e o culpabilizamos para nos isentar do complexo mundo das possibilidades. Inventamos o revés e o azar para justificar escolhas falhas ou que não resultaram em nosso desejo satisfeito. Construímos um paraíso ou a perfeição para escalarmos nossas conquistas.

Entendo a produção na psiquê do vislumbre de um futuro melhor, o que se denomina de esperança, que age como uma isca a nossa frente para nos levar adiante. Está na estruturação atual de nosso dna como um construto chamado sobrevivência. Nele, tudo o que você imaginar é possível, até a destituição completa de qualquer verniz de moral ou de civilidade, simplesmente porque essas práticas foram adotadas em função da necessidade do convívio, da reprodução, da proteção e da percepção de que, em grupo, o projeto de sobreviver seria facilitado.

Civilidade durou até o momento em que a lei do mais forte voltou a imperar. Demos um passo atrás no nosso desenvolvimento e abrimos espaço na natureza para uma prática inexistente: matar por divergência, por diversão e toda e qualquer forma de preconceito.

A dominação de territórios já fazia parte de uma grupalização — inclusive para a propagação de um dna do mais apto a sobreviver — que permitia o controle do assédio de predadores ousados.

Agora nos tornamos nossos maiores destruidores. Eliminamos inclusive da ordem da natureza a sobrevivência em troca do 'quero mais, muito mais pra mim', do acúmulo do desnecessário. Destituímos as coisas de seus valores intrínsecos e as carregamos de um desejo de superioridade: uma marca vale mais que o produto. E conseguimos fazer com que esta ilusão fosse compartilhada, tornando-se a dominante, ao ponto de que, se você não tem, mate para obter.

Futuro para que?

Wellington de Oliveira Teixeira, em 14 de julho de 2014.

* No terceiro dia, quando o sol tocou a forma novamente, ela abriu aqueles olhos e enxergou o mundo. "Eu sou Cénzi", disse a criatura, "e esse lugar é meu". E ele então se levantou e começou a andar…
Este é o início do Toustour, o Conto Supremo. Com o tempo, conforme a história da criação continua, Cénzi sente-se solitário e cria companheiros, os moitidis, feitos a partir do sopro de seu corpo, que ainda continha o grande poder de Vucta. Esses companheiros, por sua vez, imitam seu criador e dão origem a todas as criaturas vivas da terra: plantas e animais, incluindo os humanos. Os próprios sopros dos moitidis eram fracos, e portanto suas criações saíram igualmente imperfeitas. Mas o sopro de Cénzi e os sopros mais fracos dos moitidis permearam a atmosfera e tornaram-se o Ilmodo que os humanos conseguiram aprender a moldar através da reza, devoção a Cénzi e intenso estudo.
Mas o relacionamento entre Cénzi e sua prole sempre foi litigioso, marcado por conflitos e inveja. Cénzi fez várias leis para suas criações seguirem, mas, com o tempo, os moitidis começaram a mudar e ignorar essas leis, e vangloriaram-se em relação a Cénzi. Cénzi ficou furioso com os moitidis por conta dessas atitudes, mas eles não se arrependeram e começaram a se opôr abertamente ao criador. Foi um conflito longo e brutal, e poucas criaturas vivas sobreviveram ao embate, pois naquele passado havia muitas criaturas vivas capazes de falar e pensar.[…]

(S. L. Farrell, O Trono do Sol — A magia da Alvorada — primeiro livro da trilogia O Ciclo Nessântico, p.572-573)

11 de jul. de 2014

Percebedores, porém, destruidores.

Percebedores, criado por Wellington de Oliveira Teixeira em 11-07-2014.
Percebedores, criado em 11-07-2014.


Por aí é fácil ver com que zelo é preciso precaver-se na investigação das coisas para
não confundir os entes reais com os entes de Razão. Investigar a natureza das coisas é diferente de
investigar os modos pelos quais nós as percebemos. Se confundirmos isto não poderemos entender
nem os modos de perceber nem a própria natureza, pior ainda, o que é mais grave, por causa disto
incidiremos nos maiores erros, como aconteceu a muitos até hoje.

(Espinosa - Pensamentos Metafísicos, parte 1, p. 23)


Ser capaz de abrir portas para a percepção é o desafio para qualquer ser, inclusive o humano, por conta de que o ato de perceber é o que, definitivamente, promove a conexão a uma realidade e por fim estrutura tudo o que há na vida. Faz pleno sentido para quem ultrapassa os conceitos antigos onde as percepções estão limitadas pelos sentidos básicos e fundamentais como o tato, o paladar, a visão, o olfato e a audição.

Observando-se em escala milenar, o cérebro humano desenvolveu-se e o sistema neuronal o acompanhou — fato cada vez mais estudado e confirmado pelas neurociências. Novos estudos retiram do campo dos folclores elementos como a intuição, dando-lhes status de novo sentido. Já se entende que ela não é apenas a capacidade de antecipação do perigo, geneticamente transmitida e repetida - encara-se o fato da sua evolução.

Dentre os diversos caminhos adotados pelos pesquisadores e estudiosos, os mais promissores parecem encaminhar para uma reavaliação das raízes das práticas de meditação, de expansão sensorial, de espiritualidade não estruturada como religião. Trabalhos com níveis de imersão controlados (tipo programas de aprendizado em ambientes em 3D, como os de pilotos) avaliam reações cerebrais e neuronais, além de outros indicadores corporais.

As teorias quânticas nos deram o vislumbre de novos campos de possibilidades, que já nos permitem desenvolvimentos relativos aos diversos entendimentos sobre a realidade enquanto algo estruturado momentaneamente, capturado e manipulado dentro de determinadas regras que não as de nosso convívio: há mundos desconhecidos a serem experimentados.

As novas tentativas não esbarram mais nas questões anteriores da utilização extensiva de drogas, uma vez que o cérebro é capaz de reproduzir os mesmos efeitos a partir de fontes químicas diferenciadas. O êxtase como um estado de completa nulidade e plenitude simultânea tornou-se um indicador desses novos caminhos e há muito mais para vir.

O pensamento atual avalia menos o para onde nos encaminhamos e mais o como efetuar o desenvolvimento dessas novas habilidades. Esqueça aquelas referenciadas em mutantes e os medos apresentados em filmes ficcionais de ação, e imagine a construção de novos modelos de aprendizados em função dos acessos aos novos mundos percebíveis.

Farei menção da indicação do índio Dom Juan, ao dizer que sem o Caminho do guerreiro não dá para ultrapassar o estado de consciência normal, necessário para a vida cotidiana, e acessar o lado misterioso de se vivenciar um estado de consciência intensificada. Apenas unindo os dois aspectos se desenvolve a plenitude de ser e estar.

Pode parecer algo simples, mas garanto que não o é. Coisas muito cotidianas são essenciais ao nosso preparo e aperfeiçoamento. Em seu ensinamento, Dom Juan diz: "Não se pode ser completo sem tristeza e saudade, pois sem tais coisas não existe sobriedade, nem benevolência. Sabedoria sem benevolência e conhecimento sem sobriedade são inúteis" *.

Nas práticas antigas exigia-se do aprendiz uma vida de treinamento e preparo. Os novos métodos, talvez, antecipem a realidade sem a necessária estruturação. A grande questão que fica é: vai valer a pena desenvolver tantas habilidades em seres destruidores, degeneradores do próprio habitat (inclusive o relacional), que buscam reproduzir mais do que criar e preferem a mesmice a se aventurar?

Wellington de Oliveira Teixeira, em 11 de julho de 2014.

* No livro de Carlos Castañeda, O fogo interior.

8 de jul. de 2014

Cabo de guerra ou conflitos de uma vida a dois

Nuances, criado por Wellington de Oliveira Teixeira em 03-07-2014.
Nuances, criado em 03-07-2014.

Todas essas ondas e águas, carregadas de sofrimentos,
precipitavam-se em busca de suas metas, que eram muitas,
as cataratas, o lago, o estreito, o mar
e, uma a uma, as metas eram alcançadas, mas a cada qual seguia outra;
da água formava-se a bruma, que subia ao céu, transformava-se em chuva,
a cair das alturas, virava fonte, virava regato, virava rio
e novamente iniciava sua jornada, novamente fluía rumo à meta.

(Herman Hesse - Sidarta, p.113-114)


Deixe-me perguntá-lo: alguma vez você ficou variando a resposta para uma determinada questão, pelo fato delas serem condizentes com seu pensamento mas inviáveis simultaneamente? De uma maneira estranha, o que se relaciona aos relacionamentos amorosos acabam sempre permitindo essa ambiguidade. Contradição ou não, os fluxos do desejo se reagrupam dentro de nós e alteram nosso modo de agir em cada situação, mesmo nas semelhantes ou repetitivas. Estou falando daquelas separações parciais que ocasionalmente ocorrem quando há uma divergência, discordância ou briga.

Conforme o tempo passa, há uma tendência de abrirmos mão da questão original nos momentos quando estamos mais aditivados pela libido. Parece estranho, mas mudamos em função da proximidade ou de uma longa distância.

Um elemento modificador é o tempo de separação. Pode ser menos eficaz e até mesmo secundário nos casos onde outras opções ficam disponíveis e acessáveis. Marca isso aquelas pequenas fugas para uma balada noturna, após a discussão e o que chamo de pequenos rompimentos. Funcionam até que fica claro que substitutos não são capazes de alcançar o padrão original. Nessa hora, ocorre um retorno.

Mesmo que você não seja psicólogo, pode entender o mecanismo, não é? Pois bem, e quando sua posição não muda? Você padece com todos os efeitos e ainda assim — pelo fato de a questão ter significado importante — você prefere pagar o preço à aceitação.

É esse conflito interior é o que resolvi analisar (inclusive, fazer uma autoanálise faz muito bem!): forças da libido versus forças dos valores pessoais. Presto o devido esclarecimento de que a libido abarca o amor romântico-sexual enquanto que valores pessoais incluem aqueles sociais.

Para desenvolver a proposta de avaliar vou utilizar o conceito de uma atividade chamada cabo de guerra: uma corda com um nó central tem em ambas as pontas pessoas puxando-a em sua direção. É feito um traçado central e se alguém de algum lado for puxado até ela e ultrapassá-la, perde.

Como você deve ter suposto, o nome da brincadeira é bem alusivo aos acontecimentos: diariamente transformamos algumas das que seriam consideradas pequenas questões em motivo para uma disputa. O objetivo da reflexão não é alcançar uma solução-padrão para a questão, por isso, tenha sempre em mente que a resposta deve ser uma construção condizente com cada caso.

Como tesão e sentimentos amorosos falam por si, uma vez que a sua falta se presentifica em qualquer momento (dia ou noite), irei focar na importância dos valores para a manutenção de uma personalidade. Dependendo do nível de rigidez pessoal ou do esforço despendido na produção de um determinado valor, ele passa a ter um status de identidade, a tal ponto que, sem ele, o sujeito não consegue mais referir-se a si mesmo: não se sente mais o mesmo, e essa despersonalização provoca sofrimento, depressão, em casos extremos suicídio. Por isso, essas duas forças antagônicas e de grande potência produzem uma disputa que pode se estender por uma vida inteira.

Sem nenhum comprometimento com aquela antiga proposta estratificada de relacionamento, quero indicar a transição para as novas questões. Se por um lado havia papéis e liderança definidos e seguidos à risca nos antigos relacionamentos, a nova faceta exige equilíbrio na relação e cada participante precisa equilibrar-se e colaborar no equilíbrio do encontro: dois remadores em um barco pequeno na correnteza.

Em versão bem humorada, a personagem do Jô Soares, o Irmão Carmelo, não queria mais efetuar cerimônias de casamento por conta do 'casa-separa, casa-separa' da vida moderna. Numa tradução possível: Como pessoas que não conseguem ser independentes e capazes de lidar com suas realidades poderão constituir relacionamentos equilibrados? Na realidade, não o fazem. Criam uma espécie de gangorra para lidar com a questão, hora um está por baixo e por isso busca forças para se erguer, mas o faz rebaixando o outro. Por alguns poucos momentos as forças se equilibram, mas isso nunca se mantém.

Bom, creio que você entendeu os pormenores — causas e consequências — e está pronto para avaliar suas próprias disputas. Como já estou acostumado a ouvir 'você não me respondeu a questão!', vou lhe dizer assim: se o que você tem com alguém é de grande valor, aponte a questão para essa pessoa e descubra o quanto de valor você tem na resposta recebida — mesmo que seja uma questão semelhante. Assim, a busca pelo ponto de equilíbrio será uma tarefa conjunta onde limitações poderão ser contornadas.

O não ter dado a devida atenção a um valor resolve-se com um 'me desculpe', mas o silêncio, a omissão numa tentativa de abandonar a questão impede o prosseguir da relação. Aqui difere da gangorra. Não há quem se rebaixe, há pessoas conscientes de seus fortes e fracos que desejam se relacionar de uma forma plena, onde ambos tenham a oportunidade de ficar satisfeitos. Em todas as maneiras.

Wellington de Oliveira Teixeira, em 08 de julho de 2014.

* Cabo de guerra é uma atividade esportiva que faz parte dos Jogos Mundiais. http://pt.wikipedia.org/wiki/Cabo_de_guerra

7 de jul. de 2014

Pensando objetivamente

Objetiva, criado por Wellington de Oliveira Teixeira em 04-07-2014
Objetiva, criado em 04-07-2014.

Mas cada homem não é apenas ele mesmo;
é também um ponto único, singularíssimo, sempre importante e peculiar,
no qual os fenômenos do mundo se cruzam daquela forma uma só vez e nunca mais.

(Hermann Hesse - Demian, p.7)


Objetivas são como um olho que se abre e captura a imagem do desejo do fotógrafo. Permitem reter e presentificar, para a posteridade, um instante que está se tornando passado.

Alguns imaginam que o encantamento com a tecnologia esteja no fato de ser uma reprodutora do mecanismo humano da memória, mesmo que infinitamente menos potente pelo fato de que esta retém como conteúdo muito mais que imagens, porém possui como ponto fraco o fato de que nosso cérebro altera as memórias retidas de acordo com as condições, inclusive emocionais.

Por si, este fato nos torna péssimos recordadores, mesmo que detalhistas, já que o impacto produzido e a emoção impregnada é o que mais importa na retenção e manutenção do conteúdo. Somos, por assim dizer, ludibriados pelas nossas recordações.

O nome que qualifica o instrumento de captura nos remete à objetividade necessária das câmeras fotográficas: quando a memória desbota os fragmentos de uma lembrança, uma foto ou vídeo a pigmenta outra vez.

Seu uso como um instrumento auxiliar permite não apenas ao autor mas a seu grupo de referência acessar dados e estruturar informação.

Como reconstituição histórica ultrapassa um indivíduo injetando no coletivo um referencial que, a partir do modo como for usado, pode influir na construção de possíveis futuros. Filósofos da antiguidade alertavam que muito pode ser aprendido avaliando-se um passado — no mínimo, evita-se cometer erros semelhantes.

Em uma via bem promissora, o mundo irá utilizar-se cada vez mais de construtos imagéticos. Os mundos virtuais — já existem museus, bibliotecas e logo virá bem mais — tornarão mesmo pessoas com graves deficiências físicas viajantes potenciais. Na formação acadêmica de profissionais, antropólogos, engenheiros, médicos e professores já utilizam o recurso, e há potencial para a geração de possíveis novas profissões.

Num mundo onde essa proposta permeie o cotidiano das pessoas, recordações serão reconstruções predeterminadas escolhidas por quem quiser vislumbrar, de outra forma, a realidade. Objetividade será apenas o objetivo desejado por quem se aventurar a experimentar.

Por mais que pareça futurístico, essa visão não está muito distante, e assemelha-se aos processos do mundo das nossas lembranças e das extrapolações temporais (projeções, sonhos, invenções) que fazemos diariamente.

O temor, como sempre, recai no uso voltado para controle social ou bélico: o brilhantismo do ser humano só se iguala a sua imbecilidade.

Wellington de Oliveira Teixeira, em 06 de julho de 2014.

* Para aqueles que gostam da fotografia digital, conheça um pouco mais desse mundo em
http://www.tecmundo.com.br/camera-digital/2299-objetivas-para-fotografia-digital.htm

Um ideal de convivência

Silhueta,  criado por Wellington de Oliveira Teixeira entre 04 e 07 de julho de 2014
Silhueta, criado entre 04 e 07 de julho de 2014.

Os homens devem moldar seu caminho.
A partir do momento em que você vir o caminho em tudo o que fizer,
você se tornará o caminho.

(Bushido O Código Do Samurai – Daidoji Yuzan)


Silhuetas me fascinam, especialmente quando o foco central está bem protegido por sombras. Não gosto, do mesmo modo que na fotografia, do preto e branco apenas. A opção por uma tonalização monocromática permite iluminar e sublinhar a diferença entre os detalhes de cada elemento.

Minha busca de aprendizado encaminhou-me à milenar arte japonesa — volto para lá meu olhar em busca de inspiração. Não é a primeira vez. Comecei a avaliar esses elementos, me prendendo à ideia subjacente ao Último samurai de buscar a perfeição em cada gesto, sem pressa, cercando ritualmente de beleza os pequenos detalhes da vida. O, literalmente caminho do guerreiro, Bushido *.

Prática que também capturou meus sentidos em História de um gueixa, quando o duro aprendizado dos cerimoniais de relacionamento se elevavam a níveis da sedução artística — onde cada quimono, gesto ou toque recebia uma ornamentação merecedora de ser considerada obra de arte. Alí, o que não se mostra ou o é feito de forma muito sutil e parcial é o que se valoriza.

A busca por algo semelhante — já afirmo que não me atreveria jamais a correlacionar meus desenhos àqueles — me conduziu por uma demorada jornada. Exigiu jogar fora versões belas e interessantes por estarem ainda impregnadas de ocidentalismos. Meu ponto de partida real foi um pensamento — mais para intuição — de que não um elemento, mas a justaposição entre eles deveria criar o sentido de completude. E comecei a retirar dos aproximadamente vinte quadros anteriores os elementos que os sustentavam e a reuní-los como em um quebra-cabeças de modo que as transições fizessem sentido.

O porque de me dar tal trabalho é simples: há muitas peças soltas, pontas que sobram e não encaixam na vida de cada um de nós e, geralmente, permitimos que assim continue — parecem não atrapalhar.

Questões que só surgem quando o atrito ocorre, quando uma sobra impede o encaixe perfeito e o encontro não se sustenta mais por si mesmo, como a queda de um alinhamento de cartas ou dominós. É preciso desfazer o trançado da tapeçaria, retornar ao ponto, desfazer a diferença e voltar a tecer tudo novamente.

Parece-me com um pedir desculpas que, sendo aceito, proporciona um novo início, uma nova tentativa de percorrer o mesmo caminho (agora sem a rusga que o tornava impróprio).

Não entendo de ideogramas, também não entendo muito alguns dos gestos das pessoas ou meus, mas eu sei que eles estão imbuídos de grandes significados e carregam em si esperanças e desejos.

Busco então desembaraçar os fios, me permito a delicadeza de cada gesto para não estragar ou arrebentar a linha: tentar desembolar sem partir e sem emendar.

Convivência deveria ter esse sentido, também. Deixar de seguir adiante, se é preciso retornar e corrigir. Não por sentido de culpa, mas por ser a chance de construir algo mais forte, por proporcionar paz aos encontros posteriores. Por realizar uma potência que cada encontro permite de ser uma bela obra de arte — que, mesmo demorando para ser construída, representa o ideal de um relacionamento pleno e feliz.

Wellington de Oliveira Teixeira, em 07 de julho de 2014.

* O link abaixo, de acordo com informações que recebi, são anotações simplificadas, mas facilitam bastante o entendimento desta prática tão antiga e distante da ocidental.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Bushido