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29 de jul. de 2017

Meio-termos e Refazimentos

Refazimentos, criado por Wellington de Oliveira Teixeira em 27-07-2017.
Refazimentos, criado em 27-07-2017.

O bem, para o homem, é o exercício ativo de faculdades de sua alma
em conformidade com a excelência ou a virtude…
Além disso, essa atividade deve estender-se por toda a vida;
pois uma andorinha só não faz verão,
nem o faz um único dia de sol.

(Aristóteles, c.350 a.C.)


O problema com as 'pessoas de bem' é exatamente desejar impor suas verdades para escamotear as próprias insidiosidades. O tal Bem, ao invés de uma virtude*, tornou-se nada mais que uma farsa, sempre reconstruída e reafirmada, para aglutinar seres incapazes de assumir seus ódios, preconceitos e intolerâncias; àqueles incapazes de encarar a si mesmos sem suas máscaras sociais.

É fácil perceber que não basta, para mudar um comportamento ou práticas sociais, ver o sofrimento que causa, inclusive em quem se diz amar. Desconstruir preconceitos leva um tempo surpreendentemente maior que o que se imagina ao provar suas falhas e demonstrar suas inconsistências.

Mesmo quem percebe os erros, se agarra às tradições, ou está tão imbuído delas que seu domínio sobre a própria individualidade é pior do que o jugo sobre alguém aferrado e em calabouço.

Práticas enraizadas e destituidoras da humanidade (esta que deveria ser respeitada em cada um) não existem apenas em locais culturalmente destituídos. São efetivadas, com a obscena tolerância da maioria, por letrados, por magistrados, por todos os que, orgulhosamente, ocupam o posto de capitães do mato.

Domínio sempre foi a motivação dessas práticas e o motivo de não serem desfeitas em prol de novas, mais includentes. Cada vez que surge uma renovação nas formas de relacionamento – e deveriam soar como uma chance de aprimoramento ou o desfazimento do abuso das anteriores – são eficientemente cortadas pela raiz por discursos inflamados, rogando o direito às tradições, quando não pelas vias diretas e físicas da agressão.

Quando encaramos a manutenção do poder do status quo social, essa vontade de submeter outrem, fica escancarado o quanto ela esgarça os principais traços de virtudes naqueles que desenfreadamente o buscam.

Qualquer prática que, de forma impositiva, aliene o outro de suas potências pessoais é vil. É necessário e urgente empreender a sua revisão. Isso vale para as alienações e exclusões, tanto quanto para o impedimento de formas de ser diferenciadas.

É preciso bater na mesma tecla, impiedosa e constantemente, até esclarecer e desobstruir as mentalidades constituídas com inverdades, com pontos de vistas exclusivistas, que visam egoisticamente criar segregação e manter a casta que sobrevive do constrangimento alheio: todos, absolutamente todos, merecem ter a sua humanidade, sua forma de ser, respeitada.

Wellington de Oliveira Teixeira, em 29 de julho de 2017.

* O meio-termo (reproduzido de Ética da Virtude, Ben Dupré, p.102)
O meio-termo é importantíssimo na concepção de virtude de Aristóteles. Às vezes, essa doutrina é erroneamente vista como um apelo à moderação, no sentido de seguir o caminho do meio em todos os assuntos, mas a coisa não é bem assim. Como a citação deixa claro, o meio-termo deve ser definido tendo estritamente a razão como referência.
Um exemplo: a virtude que reside no meio-termo entre a covardia e a precipitação é a coragem. Ser corajoso é não apenas uma questão de evitar ações covardes como fugir do inimigo; ela também é necessária para evitar ações impulsivas e tolas, como iniciar um ataque fútil que resultará em prejuízo próprio e prejudicará os camaradas. A coragem depende da razão governando os instintos básicos e não racionais de uma pessoa; o ponto crucial é que a ação deveria ser apropriada às circunstâncias, conforme determinado pela sabedoria prática que responde com sensibilidade aos fatos específicos da situação.
A virtude, então, é um estado de caráter concernente à escolha, reside no meio-termo que é definido tendo-se a razão como referência. É um meio-termo entre dois vícios, um de excesso e outro de deficiência; e, de novo, é um meio-termo porque os vícios respectivamente excedem ou ficam aquém do que é correto tanto nas ações quanto nas paixões, ao passo que a virtude encontra e escolhe o que é intermediário. (Aristóteles, c.350 a.C.)

27 de jul. de 2017

Impulsos otimistas

Optimísticos, criado por Wellington de Oliveira Teixeira em 27-07-2017.
Optimísticos *, criado em 27-07-2017.

Finalmente, não conseguiu mais conter-se e gritou muito, de prazer, da dor dos orgasmos seguidos, dos muitos homens e mulheres que tinham entrado e saído do seu corpo, usando as portas de sua mente.
Deitou-se no chão, e deixou-se ficar ali, inundada de suor, com a alma cheia de paz. Escondera seus desejos ocultos de si mesma, sem nunca saber direito por que – e não precisava de uma resposta. Bastava ter feito o que fizera: entregar-se.
Pouco a pouco, o Universo foi voltando ao seu lugar, e Veronika levantou-se. Eduard se mantivera imóvel o tempo todo, mas algo nele parecia ter mudado: seus olhos demonstravam ternura, uma ternura muito próxima deste mundo.
"Foi tão bom que consigo ver amor em tudo. Até mesmo nos olhos de um esquizofrênico."
[…]
Como aquela garota, por exemplo – cuja única razão por estar em Villete era ter tentado contra a própria vida. Ela jamais conhecera o pânico, a depressão, as visões místicas, as psicoses, os limites que a mente humana pode nos levar. Embora conhecesse tantos homens, nunca experimentara o que há de mais oculto em seus desejos – e o resultado é que não conhecia nem a metade de sua vida.
Ah, se pudesse conhecer e conviver com sua loucura interior! O mundo seria pior? Não, as pessoas seriam mais justas e mais felizes.

(Paulo Coelho — Veronika decide morrer, p.123-124, destaque meu)


Vez após vez, opções de momento tornam-se atos, fatos, sem que ao menos a pessoa esteja convencid[x] ou consciente a respeito. Exemplo disso é o revisitar passados, com todo o seu charme e, inclusive, os seus perigos.

Quase sempre, o melhor a fazer por alguém é deixar que el[x] siga sozinh[x], tenha a sua vivência e, com a experiência, aprenda a ultrapassar os riscos. Considere, primeiro, que essa não é uma permissão para [x] outr[x], é para si mesmo: deve-se, ou não, intervir diante de uma situação?

Há quem retorna ao passado visando algum futuro, outr[x]s para reproduzir alguma forma de satisfação. No primeiro caso busca-se alguma informação ou lição; no segundo, abre-se um espaço para a nostalgia. O risco se apresenta quando esta é exacerbada e toma a forma de alienação, de uma prisão estruturada pela prostração. Este ponto é onde o abatimento impede o gerar perspectivas de vida.

Disposição ou disponibilidade são peças chaves para quem entra no dilema da interferência – que se manifesta especialmente para os seres solidários – ao identificar alguém em crise ou em depressão. Apesar de ser evidente que há aqueles em que a interseção entre os dois fica manifesta, os casos de má fé não podem ofuscar os verdadeiros: se há pessoas que amam a vitimização pessoal e a usam conscientemente para a manipulação, há os que estão vivenciando momentos complicados. Se a vida apresenta desafios para quem consegue encará-los assim, imagine para quem só consegue olhar para eles como fardos pesados ou intransponíveis. A recorrência impõe a necessidade de um outro entendimento ou classificação, exige uma avaliação acurada.

Destoando do senso comum que, geralmente, confunde os níveis desses momentos de desalento, a atenção de profissionais de saúde precisa ser capaz de identificar as nuances, as tênues linhas entre o saudável e o doentio ou patológico. Há elementos que, se encontrados em níveis defasados no corpo, impedem o cérebro de atuar plenamente: a sua recomposição é fundamental para o retorno à plena atividade. É uma questão física, não emocional ou psicológica, apesar de interferir diretamente nelas.

O cotidiano ensina que uma boa prática, ao detectar qualquer caso assim, é dar impulsos otimistas, promover superações, instilar o vigor e estimular as tentativas renovadas. Em grande parte deles, identificar presença e cuidado é o bastante para gerar a vontade pessoal de transformar a situação e promover o ultrapassamento do momento. Portanto, essa é uma boa diretriz para a atitude inicial a ser adotada por cada um. Não resolvendo a questão, na totalidade, ainda assim será benéfica para todos.

Wellington de Oliveira Teixeira, em 25 de julho de 2017.

* Na antiguidade, o sagrado habitava a insanidade daqueles que, temporariamente ou de forma constante, ficavam à margem da mentalidade geral. Esses impulsos que percorriam seus corpos, alienando suas mentes, permitiam um contato mais imediato com o permanecia sutil em cada um, expressavam aquilo que os considerados sãos reprimiam.
Mesmo com todos os desenvolvimentos científicos atuais, ainda ficamos ensimesmados com o que brota da esquizofrenia e dos estados alterados da consciência.
Talvez – e isso não pode ser desprezado –, a sociedade tenha infligido o seu constrangimento ao ser, de tal forma, que o que lhe resta, como um artifício para não desintegrar-se, seja expressar vividamente seu brilho – ao preço de vê-lo consumir-se brevemente –, até que só reste uma angustiante reclusão em um mundo interior opaco, inerte e inexpressivo; ao que denominou-se depressão.

22 de jul. de 2017

Prepotência é marca de impotência

 criado por Wellington de Oliveira Teixeira em  em 22-07-2017.
Plenipotenciário *, criado em 22-07-2017.

Tenho sérias razões para supor que o planeta de onde vinha o príncipe era o asteroide B612. Esse asteróide foi visto uma vez ao telescópio, em 1909, por um astrônomo turco.
Ele fizera na época uma grande demonstração da sua descoberta num Congresso Internacional de Astronomia. Mas ninguém lhe dera créditos, por causa das roupas que usava. As pessoas grandes são assim.
Felizmente para a reputação do asteroide B612, um ditador turco obrigou o povo, sob pena de morte, a vestir-se à moda europeia. O astrônomo repetiu sua demonstração em 1920, numa elegante casaca. Então, dessa vez, todo o mundo se convenceu.

(Antoine de Saint Exupéry - O pequeno príncipe, p. 19)


A potência se caracteriza por expandir o campo de possibilidades pessoal, não por reduzir o de outros. Quanto mais capaz alguém se torne, menos preocupação terá com o nível alcançado por qualquer outra pessoa, inclusive aqueles que desejam se situar como concorrente.

Em uma sala de prova ou concurso, o comportamento de quem tem domínio do assunto é estar concentrado no próprio desenvolvimento das respostas; quem busca copiar ou reproduzir o que outros fazem demonstra imediatamente a sua incapacidade.

Diferentemente do expresso em 'o que vem de baixo não me atinge', característico da prepotência, quem é grande, potente e capaz não tem esse tipo de preocupação, está ocupado demais em seu desenvolvimento pessoal; até mesmo quando auxilia os que estão ao seu redor, como parte integrante de seu processo de aprimoramento.

A lógica é simples, interagir com pessoas mais capazes amplia as possibilidades de alguém aprender – não interessa o nível que já alcançou. Meu mundo se torna melhor na medida em que aumenta o número de pessoas qualificadas nele. E qualificadas não se refere ao poder financeiro ou intelectual, mas a uma atitude verdadeira perante a vida e a uma busca de plenitude.

Na prática, diariamente observamos diversos comportamentos arrogantes utilizados visando a desqualificação alheia. Seus autores 'se achando', enquanto apenas se envergonhando perante todos: toda forma de prepotência assinala o medo da impotência, ou ela própria.

Wellington de Oliveira Teixeira, em 22 de julho de 2017.

*
plenipotenciário
1. que tem plenos poderes.
2. agente diplomático investido de plenos poderes, em relação a uma missão especial.

20 de jul. de 2017

Entrar em consonância

Consonância, criado por Wellington de Oliveira Teixeira em 20-07-2017.
Consonância *, criado em 20-07-2017.

Consonância
Concordância: acordo, combinação, conciliação, concordância, concórdia, conformidade, entendimento, consenso;
Combinação: harmonia, eufonia, afinação, concerto.

Apreender é entrar em consonância com uma determinada percepção do mundo. Ocorre no exato momento em que se obtém uma certeza, implícita e até mesmo indescritível, e resume a significação instantânea de algo. Isto é válido para o que quer que seja com o que se esteja em contato, qualquer relação que se estabeleça.

Vários artistas, praticantes de esportes ou artesãos sabem bem determinar o momento em que houve uma apreensão do mundo e, com ela, o entendimento se fez prática de vida. Alguns inclinam-se a nomear esse modo de apreensão de inspiração.

Possivelmente, a vida produz essa espécie de 'insight' como um meio de capturar a atenção de alguém, de modo a apresentar-lhe as possibilidades de expansão que suas potências individuais possuem.

Apenas os que estabeleceram relações de equilíbrio entre essa realidade e a do cotidiano obtiveram uso ou funcionalidade para ela; há vários casos de pessoas com uma única obra desse nível e que ficam perseguindo o resto de suas vidas um outro momento de mesmo quilate.

De diversas maneiras, a vida reúne essências visando a sua expansão, dá-lhes um conjunto sensações de significados mais complexos, que escapam às interpretações de uso comum. Quando essas unidades de essência constituem as bases de comunicação, uma espécie de dicionarização comum, estabelecem as condições de desenvolvimento mútuo. Pense assim: um sujeito só se torna marceneiro se anexar a si os códigos da madeira 1.

De certa forma, esse é um processo de sistematização que permite um modo diferenciado de observação, uma nova forma de ver. E é essa visão que traz a expertise para alguém. Enquanto a maioria consegue perceber uma irritação na pele, um dermatologista vê um determinado tipo raro de infecção, que nem mesmo outros profissionais da área conseguiram.

Como em um dicionário, há signos e significados. Sem estar sensível aos sinais não há apreensão nem interpretação, tornando a experiência algo de senso comum, sem a incrível beleza que há para quem entra em consonância com eles.

É como a questão do homem de conhecimento para o Dom Juan (em Uma estranha realidade), a não ser que você entenda os modos de um homem que conhece, é impossível falar a respeito, pois o que se torna uma predileção para um homem de conhecimento é o que ele faz para saber.

Sendo assim, aquilo que é feito visando plenitude, simultaneamente gera o conhecimento essencial necessário. São os amantes do plantio aqueles que se tornam melhores jardineiros ou agricultores.

Caso seja esta uma via de pensamento potente, pode-se definir que não só encontros que produzem fortalecimento permitem o aprendizado. No entanto, só estes produzem realização. E um ser pensante, como um ser de conhecimento, só o é quando alia o prazer ao aprendizado, não por uma mera opção, mas pelo fato de que é algo inerente, algo que o impele e o projeta a realizar para se realizar a cada momento e indefinidamente.
Wellington de Oliveira Teixeira, em 19 de julho de 2017.

* A teoria do Corpo sem órgãos, trabalhada em O Anti-Édipo, propõe a questão de que alguém é apenas uma espécie de estrutura que contém algo variante: o ser é o conteúdo, que constantemente muda. Não há um único eu, mas transições. Cito dois trechos para provocar:

Primeiro: o conceito de que há forças de composição e de decomposição que vão modelando esses 'seres', que a cada instante nos representam e com o qual nos identificamos.
As forças de atração e repulsão, de pujança e de decadência, produzem uma série de estados intensivos a partir da intensidade=0 [intensidade igual a zero] que designa o corpo sem órgãos.
Segundo: é que não há como estabelecer apenas 'um ser', os processos dos encontros emoção-percepção interferem-se entre si, se tornando, por isso, a causa de cada momentânea constituição do ser.
Foi o que Klossowski admiravelmente demonstrou no seu comentário de Nietzsche: a presença da Stimmung como emoção material, constitutiva do mais alto pensamento e da mais aguda percepção. "As forças centrífugas não fogem para sempre do centro, mas aproximam-se de novo dele para se tornarem a afastar: tais são as veementes oscilações que perturbam um indivíduo enquanto ele procura apenas o seu próprio centro e não vê o círculo de que faz parte; porque se as oscilações o perturbam, é porque cada uma responde a um indivíduo outro que não ele, do ponto de vista do centro que é impossível encontrar. É por isso que a identidade é essencialmente fortuita, e que há uma série de individualidades que devem ser percorridas por cada uma, para que a casualidade desta ou daquela as torne todas necessárias".
(Klossowski citado por Deleuze & Guatarri — O Anti-Édipo, p.25)
(1) Conceito identificado na obra de Proust por Deleuze:
Aprender diz respeito essencialmente aos signos. Os signos são objeto de um aprendizado temporal, não de um saber abstrato. Aprender é, de início, considerar uma matéria, um objeto, um ser, como se emitissem signos a serem decifrados, interpretados. Não existe aprendiz que não seja "egiptólogo" de alguma coisa. Alguém só se torna marceneiro tornando-se sensível aos signos da madeira, e médico tornando-se sensível aos signos da doença. A vocação é sempre uma predestinação com relação a signos. Tudo que nos ensina alguma coisa emite signos, todo ato de aprender é uma interpretação de signos ou de hieróglifos. A obra de Proust é baseada não na exposição da memória, mas no aprendizado dos signos.
Dos signos ela extrai sua unidade e seu surpreendente pluralismo.
(Gilles Deleuze — Proust e os signos, p.4)

16 de jul. de 2017

Continuum inimaginável

Transposição Contínua, criado por Wellington de Oliveira Teixeira em 16-07-2017.
Transposição Contínua*, criado em 16-07-2017.

O corpo pleno sem órgãos é produzido como Antiprodução, isto é, só intervém como tal para recusar toda tentativa de triangulação, implicando uma produção pelos pais. Como é que vocês querem que ele seja produzido por pais, ele que testemunha sua autoprodução, seu engendramento a partir de si mesmo?
E é sobre ele, lá onde ele está, que o Numen se distribui e que as disjunções se estabelecem independentemente de toda projeção.
Sim, eu fui meu pai e eu fui meu filho. "Eu, Antonin Artaud, eu sou meu filho, meu pai, minha mãe, e eu".
O esquizo dispõe de modos de marcação que lhe são próprios, porque dispõe primeiramente de um código de registro particular que não coincide com o código social, ou que só coincide para fazer sua paródia. O código delirante, ou desejante, apresenta uma extraordinária fluidez. Poder-se-ia dizer que o esquizofrênico passa de um código ao outro, que embaralha todos os códigos, num deslizamento rápido, segundo as perguntas que lhe são feitas, não dando nunca a mesma explicação, não invocando a mesma genealogia, não registrando da mesma maneira o mesmo acontecimento, até mesmo aceitando, quando lhe impõem e ele não está irritado, o código banal edipiano, pronto a re-entulhá-lo com todas as disjunções de que este código foi feito para excluir.

(Gilles Deleuze e Félix Guattari — O anti-édipo, p.30-31, destaque meu)


Por melhores que sejam os palpites — já que nada mais são que isso — há um obstáculo imenso a ser transposto até que consigamos definir a constituição de um ser. Certamente não estou me referindo à biologia básica ou à química estrutural, mas esse algo que escapa ao aprisionamento do corpo, flutua ou estabelece uma relação que alcança um certo grau harmonioso com ele.

As neurociências nos trouxeram perspectivas muito interessantes a respeito do funcionamento do cérebro e sua produção de uma percepção, distinta, exclusiva e pessoal: o mundo em si de cada um.

No entanto, por melhores as lógicas, os experimentos, as filosofias ou místicas, continuamos emaranhados diante dessa impotência própria, já que o ser se mantém inacessível aos esclarecimentos. É como se alguém colocasse diante de um leigo o conjunto completo de peças que, se reunidas corretamente, montam um objeto complexo qualquer. As infinitas tentativas vão gerando miríades de outros e surpreendem, ao mesmo tempo em que frustam: ainda não há noção exata do que se quer construir.

O experimento, esse jogo de tentativas e quase erros (cada tentativa constrói algo, também, mesmo que não o que procurávamos), vai trazendo novos detalhes, novas perspectivas. Aprendemos. Registro isso como ponto fundamental, no meu entendimento, da vida.

Há um outro aspecto que também fundamenta minhas elucubrações: há prazer no percurso. Somos capazes de vibrar com os avanços, com as barreiras rompidas. Uma emoção por ter, mesmo que por uma fração de segundo, ultrapassado os aprisionamentos. Sim. Somos capazes de vislumbrar, como um relâmpago que ilumina o breu. O quê não sabemos. E não importa, nessa etapa.

E essa reunião de aprendizado e prazer nos projeta, nos impulsiona, impede a paralisia e, por outro lado, nos recorda que o que há é ainda insípido, pequeno, um quase nada. Mas — perceba a importância disso — só por ter ultrapassado o nada, é suficiente para fundar um mundo, esse seu mundo individual, pessoal, exclusivo e com potencial para infinito.

Permitam concluir, sem de fato fazê-lo. Tornar-se, esse continuum inimaginável, com todas as desarmonias que promove em seu processo, pode ser o único objetivo para o que denominamos vida. E, qualquer que seja a expansão que consigo construir para esse conceito, sempre me surpreendo por tentar alcançar um pouco mais. Ainda sonho com constituir um mundo que possa ter compartilhada a sua essência e estabelecer o impossível (até agora!): um encontro pleno.

Wellington de Oliveira Teixeira, em 16 de julho de 2017.

* Para quem não tem familiaridade com o movimento que questiona o pensamento manicomial e o psicanalítico, de fundação do ser na família (triângulo pai, mãe, filho), esse trecho que cita o gigante da literatura Artaud, declarado como esquizofrênico, como exemplo dessa construção de Ser que ultrapassa as determinações sociais, que questiona a preponderância de uma forma de subjetivação que força mas não consegue dar conta do que é ser um ser.
Uma certa elegia aos escapes ou fugas a esta produção. Ainda resta a questão de como poder evitar o aprisionamento, o não ser enquadrado por este sistema que segrega e recolhe a manicômios quaisquer formas de ser ou estar que não se enquadrem, que não se engessem, que ousem o inesperado, o indefinido.
É, de certa forma, uma afirmação de que é possível se constituir um modo de ser singular e, por outro lado, um chamado para um enfrentamento aos modos confinativos e aprisionadores.

8 de jul. de 2017

Misturas mais feéricas e intensas

Misturas feéricas, criado por Wellington de Oliveira Teixeira em  08-07-2017.
Misturas feéricas *, criado em 08-07-2017.

PeloamordeDeus, faça o possível para tirar esse chavão da cabeça. Nunca é demais repetir aqui a formulação correta da teoria, da maneira como a compreendemos hoje: seleção natural não é a sobrevivência dos mais fortes, nem mesmo dos 'mais aptos', mas sim — e se prepare para alguns palavrões técnicos agora — do 'sucesso reprodutivo diferencial'.
(Reinaldo José Lopes — Os 11 maiores mistérios do universo, p.197)


São raros os momentos em que alguém se desvencilha da rede estruturante de formatação. Comando poderoso, capaz de apagar individualidades, expressividades, novidades, mas, como todo comando, tem origem, deixa traços, e é exatamente aqui onde podemos encontrar a brecha e deixar vazar os fluxos que iluminam a mente e o coração.

Há uma certa dose de ingenuidade e de idealismo nessa proposição, reconheço. Mas a experiência tem demonstrado que não há qualquer tipo de fluxo que não receba interferências, que não tenha, em si, a semente de sua própria desestruturação: a vida se propõe as sucessivas migrações, não no padrão virótico ou aniquilador (arrasa com um terreno e segue para outro), mas no expansivo anexador.

Se o for, certamente não carrega um conceito do tipo moral: este modo vale para todas as formas e expressões da vida. Tem momentos que imagino isso como um liquidificador, onde os extremos são triturados e entram na composição de formas mais equilibradas, mais condensadas.

Aí, talvez, está a raiz dessas contradições que todos os seres carregam e manifestam — que, simultaneamente, permite identificações inesperadas e encontros inusitados.

Este processo é pouco niilista se comparado ao acumulativo e progressivo do yin-yang, que configura um equilíbrio constituído pelos opostos. Pessoalmente, considero as imagens que o expressam de grande poder esclarecedor; porém, para níveis de pensamento crítico mais trabalhados, um pouco rudimentar. A natureza parece ter elaborado e desenvolvido suas artimanhas e artefatos com a evolução: as misturas estão mais feéricas e intensas — os DNA mais díspares estão se associando.

Pode parecer ficção, mas é apenas constatação: a tabela periódica cresce, há novas descobertas de seres, estão sendo criadas em laboratório toda forma de combinação visando uma determinada ação. Tenho um entendimento de que, em breve, as antigas Leis da natureza estarão ultrapassadas. Novas formas se estabelecerão, novos seres se estruturarão nessa massa amorfa, nesse magma instável, nessa fluidez imprevisível que as potências naturais estão expressando.

Por outra via de pensamento, no meio do caminho de soluções importantes para problemas da humanidade sempre haverá o uso inadequado, indevido ou inapropriado, por pessoas ou grupos interessados no controle, na riqueza ou no poder. Visto sem moralismos, estão efetuando sua forma de potência: exclusivista, dominadora e usurpadora, por meio da apropriação da vitalidade de outros — como os antigos contos de vampiros ou demônios.

Como quando iniciei, reafirmo que toda forma de potência gera brechas nos enclausuramentos, por onde encontrarão um meio de se manifestar. Então, o que se propõe não é produzir mais exclusão, em si, para qualquer forma de manifestação. Se a ignorância expande a dominação, o esclarecimento, a amplificação de vozes diferenciadas (geralmente, caladas) torna-se foco principal dos que acreditam nas composições que fortalecem o todo e, por consequência, o fortalecimento dos meios de manutenção individual: esta, sim, uma proteção contra todas as formas de escravização.

Wellington de Oliveira Teixeira, em 08 de julho de 2017.

* A reprodução das ideias, práticas e dos processos colaborativos são a melhor arma contra os aprisionamentos e dominações de diferentes matizes. Somente na potencialização de todos é possível assimilar os diferentes atributos que existem: mesmo a raiva ou o ódio podem ser propulsores de boas ações.
Sim, é complicado! Tudo depende de dosagens. A higienização, a pasteurização, a homogeneização social carregam mais riscos que benefícios. Isolar uma criança não é a solução. Tentar escamotear as práticas existentes, idem. Isso faz desaprender os processos de defesa corporal ou mental contra os possíveis 'venenos' que habitam a vida.
Impedir alguém de tentar, de descobrir, de se diferenciar e de se encontrar na vida é a pior prática educativa que posso imaginar. Questionamentos permitem muito melhor o desenvolvimento do que a eliminação da questão (ou dos perigos), por isso, capacitar qualquer indivíduo a avaliar criticamente é a melhor ferramenta que se pode oferecer para que ele construa sua individualidade e se expresse de forma plena.

1 de jul. de 2017

Inexpressíveis ondulações

Ondulações criado por Wellington de Oliveira Teixeira em 30-06-2017.
Ondulações *, criado em 30-06-2017.

As letras datilografadas estavam meio apagadas. O estilo era um eco do meu, porém lá no passado, uma sensação de quem eu era. Não era mais a minha escrita; era a escrita dele, do garoto de então.
Terminada a leitura, enchi-me das cautelas e das esperanças dele.
"
Eu sabia o que estava fazendo!", disse ele. "No seu século XXI, cercado pelas autoridades e pelos rituais, está tudo engatilhado para estrangular a liberdade. Não consegue enxergar? O plano é fazer seu mundo seguro, não livre." Ele viveu sua história, sua última chance. "Meu tempo passou. O seu não."
Refleti mais uma vez sobre a voz dele, o último capítulo. Estaríamos nós, as gaivotas, assistindo ao final da liberdade em nosso mundo?

(Richard Bach — Fernão Capelo Gaivota [nova edição completa, 2015], p.130)


Tenho prazer e sou grato pela forma como me constituí neste meu mundo: as conexões com os elementos vitais se estruturam potentes e não me encanta a ideia ou o desejo de morrer por si mesmo. A Ordem sussurra com inexpressíveis ondulações que se acercam, adejando a minha alma, e que pairam como um sinalizador indicando outros modos, outros campos, outros mundos a experimentar. Até agora, fui deixando para depois. Depois que eu experimentasse mais um ou outro sabor ainda desconhecido, que vivenciasse outra nova conexão e me inundasse com sua beleza e frescor.

Mas tudo se apequena, bastando apenas vislumbrar a ideia da potencia em si, das composições e arranjos de níveis infinitos. E fico a especular o porquê essa vontade de me parir se reduz, dia após dia. Talvez os apelos aos infinitesimais estejam superando os da substantivação.

Os apegos são tão raros. Mesmo havendo tantos pontos de ancoragem, o campo dos sonhos ou das irrealidades traz essa vontade de transformação, em nível de expansão, disso que constituí como o meu eu.

Essa forma está cada vez menos conseguindo conter as forças que vão se acumulando e se manifestando como uma propulsão. Me estranho todos os dias, mesmo naqueles em que efetuo ultrapassamentos efetivos. Fluxos de desejo vão se alinhando e se extinguindo, sem que novos ocupem seu lugar. E isso não me causa vazios, mas a sensação de que deu tudo que tinha que ser dado, se realizou.

Certas proposições de vida ainda resistem, pedem permanência, imanência — e eu, condescendente, aceito. É um referencial que traz prazer, como o de ver crias de corpo e alma se estabelecendo.

O fato de imaginar horizontes não me impede de valorizar o continente, esse espaço contingente, esse corpo e essas vias de acesso a outras percepções contíguas: esse serzinho lindo ao meu lado que, ao sorrir, me recorda — ou tange cordas invisíveis em mim — o que é o belo deste plano da vida. São efeitos simultâneos de brilho de alma, que vazam pelo olhar, ondas etéreas que detém uma teimosia em efetuar o impossível para o físico: o toque.

E me questiono, sem verbalizar: se há incerteza, deve ser porque não se esvaziou, não se completou o ciclo, não se efetuou plenamente. Eu jamais diria falta algo. Não é isso. Não há falta. É um certo extra, um plus, um aditivo que teima se aproximar, seduzir a vontade. Essa força que perpassa os seres e os faz desejar outro dia, outro aqui e agora, um determinado grau de permanência e, só de vez em quando, o de ausência.

Quem sabe?, talvez seja esse diferencial — entre potências do ir e do ficar — que me sustenta no plano estrutural, a dita realidade. Esse mesmo campo de percepção, que se constituiu como um percurso de ser humano, que observo e ouso afirmar digno, ele prossegue. É potente, mas já frágil em seu poder de cooptar minhas fugas para fontes desconhecidas, essas possibilidades que reluto mas, por falta de uma opção fidedigna, digo espiritualizadas, porque não mais coadunam com os reconhecidos referenciais, mesmo os do plano mental.

É um tanto quanto demente o arcabouço que me permite flutuar e, de quando em vez, participar de alguma percepção que não se referencia nas minhas lógicas, nem mesmo as mais potentes. Ganham status de lindos e maravilhosos estranhamentos, capazes de efetuar fluxos que nem sei nomear, e deixo permanecer inomináveis. Não quero submetê-los à racionalização e não quero impedi-los de seduzir a razão, também. Que só efetuem o que é para ser efetuado.

Tentarei fazer um paralelo: são como um flash que irrompe a escuridão e, por um momento ínfimo, me traz a estranha sensação de entender tudo, de estar esclarecido, de saber qualquer porquê. O resíduo promove algumas certezas, direciona o percurso e, também, uma certa nostalgia, um querer a nova experimentação, esse meu flerte com o indizível. Parece que estou esvanecendo um véu, aprendendo a transpor os transparentes invólucros que me estabeleceram isso que estou. Realizo a construção dessa ideia de ser, mas não pela contingência, de uma forma semelhante a que alguns dos referenciais que tomei pelo caminho discorreram e que, à época, assumi mito ou parábola de um estado de mente ou de espírito que, ao esbarrar em uma verdade e, sem ter meios de descrevê-la, recorre a simbolismos.

É bom, até mesmo tentar esse improvável objetivo de conseguir descrever esse processo. E, então, estou indo e, por enquanto, retornando. Prosseguir também é bom; e vou realizando um entendimento diferenciado, que ousa esferas quase sempre encobertas pelo fluxo das supostas certezas, verdades e definições. E isso me encanta.

Wellington de Oliveira Teixeira, em 30 de junho de 2017.

* Esses pensamentos resultariam incompletos, sem a citação de uma das personagens mais intrigantes e estimulantes para mim, o índio Yaqui Don Juan Matus.
"O que parou em você ontem foi aquilo que as pessoas lhe têm dito que é o mundo. Entende, as pessoas nos dizem, desde o momento em que nascemos, que o mundo é assim e assado, naturalmente não temos outra escolha senão ver o mundo do jeito que as pessoas nos dizem que é.
[…] Talvez agora saiba que ver só acontece quando a gente se esgueira entre os mundos, o mundo das pessoas comuns e o mundo dos feiticeiros. Você está bem no meio dos dois. Ontem, acreditou que o coiote havia falado com você. Qualquer feiticeiro que não vê acreditaria o mesmo, mas um que veja sabe que acreditar nisso é estar preso ao mundo dos feiticeiros. Igualmente, não acreditar que os coiotes falam é estar preso no reino dos homens comuns."