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21 de mar. de 2021

O jogo das transformações

Leveza, criado por Wellington de Oliveira Teixeira em 01-01-2021

Leveza *, criado em 01-01-2021

Os homens não gostam de pagar com confiança e amor, e sim com dinheiro e mercadoria. Enganam-se mutuamente e ficam à espera de ser enganados. É preciso aprender a considerar os homens seres fracos, egoístas e covardes, e a ver quão profundamente nós próprios participamos dessas más qualidades e instintos, sem no entanto deixar de crer e de alimentar com essa crença a própria alma; o homem também possui espírito e amor, nele habita algo que se contrapõe aos instintos e anseia por enobrecê-los. Mas tais pensamentos são já muito desconexos e sutis para que Servo os pudesse compreender. Pode-se dizer que ele estava a caminho de encontrá-los, que sua trajetória ia desembocar neles e passar por ele
(Hermann Hesse — O jogo das contas de vidro)


Talvez apenas uma fábula pessoal, a ideia de que há pelo menos um momento da vida, ou uma certa idade, onde negar tudo seja importante ao ponto de reiniciar seus fundamentos, a partir dos acúmulos, mas não mais sob seus efeitos ou controle.

Um ponto de transição como o fundo de um funil, mais para um conta gotas, que vai permitindo, uma a uma, as apostas que fizemos na vida, os objetos de nossa avaliação positiva, aquilo que nos encaminhamos a acreditar, ativa ou passivamente serem filtrados, evaporando todo o resto. Eles são triturados, sacudidos até que na gota residual só reste o seu núcleo, não mais seus elementos coadjuvantes.

Um processo desse porte e nível não aconteceria sem consequências profundas.

Em alguns, pelo pouquíssimo que investiram na vida, mais sequelas e amarguras. Em outros, por alcançarem um ponto de equilíbrio, a transição para uma nova fase da vida com menos condescendências e muito mais propriedade. Raríssimos consequem torná-lo um processo de transmutação e ver um novo ser emergir dele, com seus modos distintos de estar neste mundo e de se conectar a esferas mais amplas da vida.

Sob o ponto de vista de que todos passam por isso como experiências de vidas, surgiram imagens como a yin yang, a transição entre polos diferenciados permitindo absorções parciais até que seja necessário refletir o acúmulo e repetir o processo. Outros, ideários de outras matizes, sugeriram transições entre níveis de percepção que existem no mundo – é preciso saltar e alcançar o próximo. Há também o entendimento de um aprofundar-se em uma caminhada a sua matriz.

Para um pensamento mais factual, menos crédulo e mais crítico, essas lógicas podem até perder a sua essência. Não perdem, certamente, sua indescritível potência como conotação. São uma parábola viva sobre a vida, sobre as transformações, sobre o que se perde, o que se ganha e o que se leva adiante – seja nas transições biopsicológicas, seja naquilo que na falta de palavra melhor denominamos espiritual ou indescritível.

Não há necessidade de que nada disso seja certo, para que haja um quê de veracidade na proposta. Transitamos fazendo contatos que, fundamentalmente, são trocas. Cedemos algo e absorvemos algo. E, quando seguimos, é possível não ser mais como antes.

Há casos críticos, em que o que se absorve penetra e consome o que encontra até que nada reste mais, além do ôco, do nada, o domínio do mesmo, do contínuo e tedioso vazio.

Há outros, onde o que se absorve é similar a uma boa semente que prospera e começa a trazer novidades, após outras anteriores. Mas possuem como limitação a sua própria repetição.

Novamente raríssimos, alguns trazem vontade. Não é nada específico, é como curiosidade, interesses difusos, visões ampliadas. E o que provoca é a busca de novos e distintos encontros. Mesmo que perigosos – todo encontro tem riscos –, por mais ingênuo que um ou outro pareçam ser, são provedores de tudo o que permite a expansão da alma, do conhecimento e da própria vontade.

Nas vivências do cotidiano, colecionamos exemplos de cada, na mesma proporção em que estes acontecem.

Por isso, convivemos com uma maioria incapaz de trazer algo além da mesmice, do tédio. Porta vozes da repetição, reprodutores dos jargões inócuos ou explosivos, que nem mesmo conseguem explicar ou absorver.

Algumas vezes, encontramos um bom diálogo para algumas áreas da vida. São pessoas que investem um pouco de si, mas acreditam-se limitadas e, por conta disso, nunca se encorajam a avançar e descobrir as novidades.

Há, porém, as oportunidades raras na vida de encontrar sujeitos que se opõem plenamente à sujeição. Quando reagem, não o fazem por reação padronizada, são imbuídos de estratégia e de crítica. Atuam não como autômatos, o fazem por uma força vital inquietadora, expansiva e potencializadora. Em seus encontros e trocas têm o dom de receberem o repetido, o oco, e retornarem instigantes propostas de transformação – ideias que estimulam, críticas que contorcem e filtram a mesmice e permitem sair dela apenas o que possui vida –, se adotadas.

A torcida, se é que ela muda algo, é sempre para que aquela minúscula gota de sorte seja a da vez e, sozinha, provoque uma transmutação, algo que vai muito além do mito de casulos e borboletas.

Wellington de Oliveira Teixeira, em 21 de março de 2021.

* Conceitos como metanoia e metamorfose são sempre indicadores de uma determinada mudança, mas, apesar do otimismo com que são empregados, não carregam, em si, questões qualitativas, apenas processuais.

Aos queridos Luis Cláudio da Rocha Prét e Eric Bragança