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25 de jul. de 2014

Transportabilidade linguística

Transgeneralização, criado por Wellington de Oliveira Teixeira em 23-07-2014.
Transgeneralização, criado em 23-07-2014.
Liberem-no com um gesto demasiado violento,
façam saltar os estratos sem prudência
e vocês mesmo se matarão, encravados num buraco negro,
ou mesmo envolvidos numa catástrofe, ao invés de saltar o plano.
O pior não é permanecer estratificado – organizado, significado, sujeitado –
mas precipitar os estratos numa queda suicida ou demente,
que os faz recair sobre nós, mais pesados do que nunca.

(Giles Deleuze e Felix Guattari — Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. v.3, p.23-24)


Línguas de ascendência latinas são eminentemente machistas perante a questão de gêneros. A nossa também. Dizemos: as rosas e os cravos, eles são lindos. Viu? Diante de palavras com gêneros diferentes priorizamos o masculino. Parece natural, mas linguagem é algo criado para a comunicação, logo qualquer padronização vem das relações sociais existentes.

A língua permite atravessamentos nas portabilidades. Da antiga preponderância biológica e genética do XY ou XX, constituímos valor para a manifestação subjetiva onde estes elementos não possuem determinação no gênero, socialmente vivenciado.

Não tão comuns como na língua inglesa*, há substantivos que possuem uma única forma indistinta (geralmente chamados de comuns de dois**) que necessitam de artigo (o, a, um, uma) ou outros elementos textuais para determinar o gênero: anarquista, camarada ou colega, colegial ou estudante, fã, imigrante, indígena, doente, suicida. Há profissões — e suas relações — que encampam a mesma ideia: agente, dentista, intérprete, jornalista, taxista, policial, servente, gerente, chefe, cliente.

Poderíamos chamá-los de unissex, termo criado na década de 1960, para dar conta das práticas dos hippies de abarcarem elementos transgêneros em função das ideias de compartilhamento universal: cabelo, roupa, acessórios, dentre outros, não deveriam ser determinantes de sexualidade. Se na época eram posicionamento contra o estabelecido ocidentalmente, tornou-se algo comum, adotado até hoje.

A proposta não visa — como tenta induzir o livro UNISEX – A criação do ser humano “sem identidade”, de Enrica Perucchietti e Gianluca Marletta — à constituição de um imaginário global influenciador das escolhas das massas ou demolir as identidades sociais, religiosas, políticas ou culturais. Que dirá a absurda correlação com a desintegração da instituição familiar para criar o consumidor perfeito, facilmente manipulável***.

Em contraposição a esse nível de preconceitos, a atual linguagem proporciona um apontamento diferenciado, uma abertura clara na fundamentação da comunicação: é preciso transpor a predeterminação, pois não há como obrigar ninguém a se sentir como gostaríamos. Até há, e infelizmente a história comprova, a custa de muitos seres infelizes, a formação dos guetos sociais.

Para ilustrar a questão da transposição dos gêneros, vou utilizar uma proposta bem humorada do DCE da Uff que recorre a uma generalização do masculino quando a ideia implica em aumentativo ou força: Bandejão, a bandeja transgenérica. A maioria das pessoas, por força do hábito, esquece que aumentativo de bandeja é bandejona e não bandejão. Mas produzimos a transposição do seu gênero para demonstrar ampliação e criamos o transgênero A bandejão (em contraposição a bandejona), por ser inaceitável, transformou-se em O bandejão - o bandeja agradece.

Um costume que não aprovo — o de se realizar questões de múltiplas escolhas tendo no enunciado Marque com um X a opção… — foi tão usado, no período em que se queria reprodutores de conhecimento e técnicos especialistas e não pessoas pensantes, que se perpetuou. O tal X, porém, acabou sendo adotado para algo muito interessante, que vejo com muito bons olhos: seu uso como elemento genérico de desgenerização por inclusão. Se antes excluíamos o feminino, agora ele introduz o conceito de universalização, de participação geral e todxs estão convidadxs a usá-lo.

Wellington de Oliveira Teixeira, entre 24 e 25 de julho de 2014.

* Com ascendência da língua falada pelos povos germânicos, o idioma nascidos nas ilhas britânicas conhecido como anglo-saxão, o originalmente Englisc (ou língua dos anglos") deu origem ao inglês atual.

** Cuidado para não confundir substantivos comuns aos dois gêneros com substantivos sobrecomuns (que apresentam um só gênero, como a criança, a testemunha, a pessoa; ou o gênio, o anjo, o algoz) ou epicenos (nomes de animais que precisam do macho/fêmea para distinguir (a cobra, a formiga, a gaivota; ou o condor, o crocodilo, o gavião).

*** A visibilidade da questão dos gêneros não biológicos, antes completamente escondida dentro dos armários, passou a integrar a agenda mundial. Banheiros unissex, não separados, dentre outras transformações, criaram um reboliço imenso nos setores mais conservadores. O que poderia ser apenas uma prática inclusiva transformou-se em uma nova chamada à guerra pelos valores tradicionais, de modo similar aos racistas americanos da Klu Klux Kan (KKK) — cujo objetivo era impedir a integração social dos negros recém-libertados e a universalização dos direitos de cidadãos como adquirir terras e votar — apelam para a destruição dos valores e da família.
A história — quase sempre esquecida — se repete e fundamentalistas reaparecem com outras roupagens.

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