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22 de jul. de 2014

Construtos

Construtos, criado por Wellington de Oliveira Teixeira em 22-07-2014.
Construtos, criado em 22-07-2014.

São os signos da linguagem que deram origem às ciências abstratas.
Uma qualidade comum a várias ações engendrou as palavras vício e virtude;
uma qualidade comum a vários seres engendrou as palavras feiura e beleza.
Alguém disse um homem, um cavalo, dois animais;
em seguida, alguém disse um, dois, três, e toda a ciência dos números nasceu.
Ninguém tem ideia de uma palavra abstrata.
Notaram-se em todos os corpos três dimensões, o comprimento, a largura e a profundidade;
tratou-se de cada uma dessas dimensões, e daí todas as ciências matemáticas.
Toda abstração não é senão um signo vazio de ideia.

(Diderot: O sonho de D’Alembert - Coleção Os Pensadores, p.280)
*


A estruturação de qualquer elemento exige alguns substratos comuns. Real ou imaginário, a percepção inicia o processo e o desejo o embasa. E essa tem sido uma questão que atravessa, literalmente, grande parte das áreas do conhecimento. Não há, de teorias a práticas, absolutamente nada que escape dessa formulação: somos fundamentalmente seres desejantes e por (e no) desejo produzimos cultura.

Alguns pensadores buscam apontar e visibilizar o processo de geração de cultura de um determinado grupo e a constituição de novos hábitos a partir dos interesses comuns. Outros, navegam na captura do desejo, na aculturação acrítica, onde a imposição mesmo que disfarçada a promove.

Da inicial necessidade de proteção básica da vida, criamos variações que chegaram até a não tão atual assim conquista de status, produzindo relacionamentos, objetos, linguagem, cerimoniais e determinantes ético-morais e religiosos. Todos são fabricados. Não são prévios, muito menos naturais. No entanto, pelo prolongamento da prática, acabamos por naturalizá-los e normatizá-los. O normal passa ser a nossa forma de falar, de ser e de estar, então, os padronizamos.

Um dia encontramos um estrangeiro — migrante ou imigrante em nossas terras — e descobrimos a alteridade como possibilidade, depois do estranhamento. Pontuo, aqui, o início do fim da teoria da normalidade.

Aquele que se dispõe a observar ou avaliar as diferenças poderá se sentir atraído a aprender com a nova forma. Esse desejo, estimulador do contato, poderá viabilizar diálogos não intermediados pelo conhecimento prévio dos vocábulos. Gesticulações, referenciações aos objetos e práticas, seguidos da palavra usada por cada um para o mesmo, dicionariza a relação.

Em pouco tempo, poliglotas constituídos dialogam e referenciam um mundo novo, cuja absorção dos novos padrões culturais é facilitada. Pode parecer complicado, mas é um fato corriqueiro e diário.

Estudiosos como Piaget apontaram a graduação na construção da inteligência utilizando o conceito de camadas sobrepostas e apontaram que – como em qualquer construção – uma absorção não concluída ou parcial poderia gerar as rachaduras na estrutura. Apesar de, em regra, incapazes de fazer ruir o edifício, impedem um avançar mais pleno da manifestação das capacidades individuais. Apontaram mais além, o processo explica a radicalidade da capacidade humana de adaptação.

Pense na maturação social, onde uma criança amplia suas referências da família e vizinhos, para a escola e para o mundo: conteúdos, costumes, interesses, conceitos e práticas diversos se presentificam e põem em xeque a unicidade dos valores recebidos. Por curiosidade, por avaliação, por necessidade e por participação, muitos são adotados momentaneamente ou absorvidos. O universo pessoal é expandido.

Esse processo é análogo aos estudos realizados por pesquisadores (cientistas ou não) no seu caminho de descobertas, de confirmações e refutações dos conceitos e valores vigentes. A expressão pensar fora da caixa denota esse conceito.

As ciências sociais e psicológicas estão incluindo a incapacidade de lidar com a questão da variação, da mudança, do aprimoramento ou da transformação como uma das causas da constituição da rigidez nas pessoas.

Seja pela radicalização ou pela inflexão, o mundo daqueles que se agarram ao constituído e determinado como padrão mostra o quanto as construções internas são frágeis. O terror à possibilidade de ruir o arcabouço por conta da troca ou retirada de uma peça, faz com que a rejeição total, intransigente e determinista de um modelo crie, não uma pessoa, um elemento repetidor, impedindo a evolução e o processo de individualização e realização pessoal.

O construto chamado fundamentalismo está carregado dessa processual formalização, que ignora os efeitos do que ódios, agressões, distorções e torturas podem causar aos seres humanos em prol da modelagem comportamental e de pensamento. Sua sobrevivência exige seres docilizados, cujo potencial transformador seja encapsulado em formulações prévias, frases repetidas, posicionamentos irrefletidos mas seguidos à risca. Isso pode ser obtido pelo discurso manipulador ou pela ação direta dos aparelhos de repressão. Em ambos os casos, o resultado é único e triste: quem sofre seus efeitos clama por liberdade, mesmo que silenciosamente.

Wellington de Oliveira Teixeira, em 22 de julho de 2014.

* Diderot propõe a existência um nível organizacional da natureza, um verdadeiro sistema onde tudo está unido, uma cadeia contínua, das formas mais primitivas de organização da matéria até as mais complexas, nos domínios do humano.
Animado por um fluxo, como concebido por Heráclito de Éfeso (séc. VI-V a.C.), o universo é obediente às leis formuladas por Descartes para a matéria; é dinâmico e em permanente transformação, em vez de estático e criado como um conjunto de coisas fixas, como concebia a tradição aristotélica e escolástica cristã.

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