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30 de jul. de 2015

Criando um mito pessoal

Mitogonia, criado por Wellington de Oliveira Teixeira em 28-07-2015.
Mitogonia*, criado em 28-07-2015.

É digno de nota que, por pouco que os homens sejam capazes de existir isoladamente, sintam, não obstante, como um pesado fardo os sacrifícios que a civilização deles espera, a fim de tornar possível a vida comunitária. A civilização, portanto, tem de ser defendida contra o indivíduo, e seus regulamentos, instituições e ordens dirigem-se a essa tarefa. Visam não apenas a efetuar uma certa distribuição da riqueza, mas também a manter essa distribuição; na verdade, têm de proteger contra os impulsos hostis dos homens tudo o que contribui para a conquista da natureza e a produção de riqueza. As criações humanas são facilmente destruídas, e a ciência e a tecnologia, que as construíram, também podem ser utilizadas para sua aniquilação.
Fica-se assim com a impressão de que a civilização é algo que foi imposto a uma maioria resistente por uma minoria que compreendeu como obter a posse dos meios de poder e coerção. Evidentemente, é natural supor que essas dificuldades não são inerentes à natureza da própria civilização, mas determinadas pelas imperfeições das formas culturais que até agora se desenvolveram. E, de fato, não é difícil assinalar esses defeitos. Embora a humanidade tenha efetuado avanços contínuos em seu controle sobre a natureza, podendo esperar efetuar outros ainda maiores, não é possível estabelecer com certeza que um progresso semelhante tenha sido feito no trato dos assuntos humanos; e provavelmente em todos os períodos, tal como hoje novamente, muitas pessoas se perguntaram se vale realmente a pena defender a pouca civilização que foi assim adquirida.

(Sigmund Freud — Futuro de Uma Ilusão, p.4 )


Somos realmente uma raça que transmite conhecimento por meio de narração de histórias, algumas produzidas com o intuito de facilitar um conceito: nossos mitos e parábolas carregam, além de uma ilustração cativante, um conjunto de sinais que permitem que valores sociais possam ser passados adiante e que são inteligíveis e assimiláveis desde a mais tenra idade. É o caso dos heróis, dos deuses e dos semideuses.

Construímos um mundo de acontecimentos que enaltecem a personagem, suas façanhas, cativando a atenção dos ouvintes, ao tempo em que absorvem ideias consideradas importantes. O bravo, o sábio e o amante geralmente carregam, diferenciadamente, a preferência dos ouvintes. Mas quase todos se encantam com os superpoderosos, os frutos dos encontros entre deuses e mortais. Os descendentes dos seres alienígenas, sob os quais se produzem intricada formação de histórias, obtiveram concordância de tal monta que muitos apostam a vida serem verdadeiros. Ganharam o status de semideuses, os que produzem milagres ou subversão das leis naturais até então conhecidas.

Bem, se confrontássemos os que criam com a possibilidade de serem uma lenda ou mito apenas, haveria a criação de um conflito de proporções homéricas. Mas, entre si, quem adota uma fé é capaz de conceituar a outra desse modo. Assim, além da sua fé, todas são apenas ilusões, ignorância, desconhecimento da verdade.

É possível crer no filho de Krypton, no lanterna verde, na mulher maravilha, como também no Hércules, nos Nephilins, apenas para citar alguns bem conhecidos. Se pararmos por aí, tudo bem. Mas… se alguém ousar citar Jesus, krishna ou outros que alcançaram lugar de destaque no panteão o bicho pega. Seguem a mesma lógica dos heróis, deuses e semideuses. Transmitem suas lições por meio das suas façanhas. Carregam uma intricada história de contato alienígena (ou seres não humanos, se quiser) e cumprem tarefas que seus pais determinaram, de forma voluntária ou por necessidade.

O objetivo desse texto foi provar para mim mesmo que seria capaz de sair do meu centro referencial para avançar meu entendimento sobre opções pessoais, religiosas ou místicas, válidas e diferentes da que eu adotei: há perspectivas de eras, de culturas, de apropriações e sincretismos entre os vários elementos míticos. É preciso reduzir em muito ou eliminar a carga de preconceitos a que carrego (que tal o lado 'negro' para qualquer aspecto ruim ou demoníaco?)

Em minha mitogonia posso crer em uma forma superior de vida ou uma unicidade intrínseca aos seres de qualquer tipo, orgânicos ou inorgânicos. Numa teia que une tudo e todos. Evitando o nome batido (deus), denomino essa potência cósmica de Ordem. Como em tantos outros mitos, afirmo que o objetivo da Ordem é desenvolvimento das potencialidades dos seres, conectando-se a ela de forma única, impossível no estado atual de desenvolvimento humano. O desenvolvimento ocorre por meio da apropriação por conexão direta a uma poderosa rede energética, as fontes de existência, ou por transmissão feita por alguns que alcançaram uma elucidação maior e compartilham.

Posso, a partir daí, criar histórias que explicam os acontecimentos naturais e espirituais. Criar um método para desenvolvimento pessoal, relacionar alguns dos eventos especiais que aconteceram comigo a uma ação cósmica de efeito direto — um nível de conexão primária que permite o uso de forças ou capacidades que ficam inibidas, ou com pouca possibilidade de acesso e uso.

Creio que me fiz entender. Ao gerar meu mito pessoal, estou fazendo o que todos os seres humanos, em todos os tempos, fizeram. Cada cultura teve o seu modo de se relacionar com as forças universais, gerando o seu modo específico de contar seus mitos.

A questão que me incomoda não é a fé, que respeito inteiramente, mas o uso político dela. Os mitos foram reestruturados por uma camada sacerdotal para ganharem impulso na teia social e acabarem cooptados pelo poder político, que se sustentou deles. Enriquecimento de alguns e miséria para a maioria foi a marca histórica desse uso. Não mudou muito. Mesmo quando todo o mito ensina o caminho contrário, ninguém ousa contradizer aqueles que ocuparam por usurpação o lugar do herói, deus ou semideus — é que eles geraram interpretações sobre interpretações e daí criaram leis e normas que acorrentam o livre fluxo da fé e das práticas espirituais em cada um.

Wellington de Oliveira Teixeira, em 30 de julho de 2015.

* Mitopoese é um termo grego para a criação dos mitos que também pode ser também designada por mitogonia. Os mitos podem ser considerados como verdade ou expressão dela. Até mesmo o discurso científico exige uma grande dose de fé, mesmo pretendendo afirmar-se sobre outros patamares.
Os épicos como a Ilíada e a Odisseia de Homero, do período entre 1200 e 800 a.c, tentam dar conta da relação dos homens e dos deuses gregos. A Epopeia da Criação, que contém relatos dos mais antigos conhecidos sobre a cultura sacerdotal, hierárquica e autocrática, apresenta a mitologia suméria.
As verdades míticas de origem pagã ou cristã possuem as mesmas características, mas as outras mitologias perderam influência com a ascensão do cristianismo como religião oficial do Império Romano, imposta na Idade Média a preço de vida.

Um comentário:

Anônimo disse...

Não sei se a potência cósmica denominada Ordem é teleológica ou não. Por mais que eu gioste na ideia de livre-arbítrio, tenho dúvidas acerca da natureza do intento. Será ele uma força presente em tudo que é consciente. Ou será uma ilusão que, como o tempo, nos permite dar conta do absurdo da existência. Não sei. Mas, citando as Memórias de Adriano, “O espírito humano, porém, reluta em se aceitar como obra do acaso e a não ser senão o produto fortuito do imprevisto ao qual nenhum deus preside, nem mesmo ele próprio”.
Sendo ou não uma ilusão, lançando raízes na razão ou no mistério, o intento produz obras incríveis.
Já falei aqui da experiência que tive no Peru, quando, simultaneamente à leitura do livro A prisão da Fé (http://lelivros.site/book/download-a-prisao-da-fe-lawrence-wright-em-epub-mobi-e-pdf/), pude vivenciar a impressionante obra de vida e morte que a Igreja realizou naquele território. Pilhas e pilhas (e pilhas) de esqueletos, em catacumbas construídas com o sangue dos andinos, tudo em nome da fé.
Minha razão gosta de achar que tenho controle sobre algo; meu coração tem dúvidas. Entre àquela e esse sigo dando minhas caneladas na bola da vida. E, às vezes, faço gol.