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24 de jun. de 2014

Fluxos circundantes

Irradiar, criado por Irradiar, criado em 22-06-2014. em 22 de junho de 2014.
Irradiar, criado em 22-06-2014.

Num passado remoto, o homem deve ter ouvido com assombro o som de batidas regulares
que vinham do fundo de seu peito, sem conseguir saber o que seria aquilo.
Não podia identificar-se com um corpo, essa coisa tão estranha e desconhecida.
O corpo era uma gaiola e dentro dela, dissimulada, estava uma coisa qualquer
que olhava, escutava, tinha medo, pensava e espantava-se;
essa coisa qualquer, essa sobra que subsistia, deduzido o corpo,
era a alma.

(Milan Kundera — A insustentável leveza do ser)

Você sempre volta com as mesmas notícias.
Eu queria ter uma bomba, um flit paralisante qualquer,
pra poder me livrar do prático efeito das tuas frases feitas, das tuas noites perfeitas. […]
pra poder te negar — bem no último instante — meu mundo que você não vê, meu sonho que você não crê.

(Cazuza — Eu queria ter uma bomba)


Construir, comprar ou alugar algo para poder aproveitar as águas, as terras ou o ar é uma boa ideia para expandir seu universo e se permitir aprender um pouco mais. Há muitas formas de locomoção e o mundo é imenso. Mas eu passei a gostar de viajar incógnito e o universo das agências de turismo não é opção para mim. Realidades são estritas, não por eu não saber ou querer aproveitá-las. Quando desejo e posso, eu o faço! É que as viagens ganharam como determinantes as interações estabelecidas com a vida.

A palavra encontrar apequenou-se quando entendi que solidões não se atraem. Elas não se gostam — até se evitam! Até que aprendam a vivenciar a solitude, o estar só sem se sentir solitário, os seres tentarão multiplicar suas emoções apenas absorvendo o que lhes é oferecido. Triste situação daqueles que só aprenderam na escola insidiosa do sugar.

Percebi que meu voo sozinho é solidário apenas quando partilha aquilo que é o espaço constitutivo e possibilitador das trocas. Mas, atenção!, trocas não representam uma relação de pesos e medidas de iguais proporções. Todo encontro pleno propicia mais do que algo ou alguém e eu temos para oferecer, é a ordem do equilíbrio que se estabelece.

Para tentar explicitar isso que acontece de forma inexplicável vou citar o cuidar de uma criança. Pais ou responsáveis podem confirmar. Basta lembrar aquele sorrisinho encantador, que instantaneamente aflora uma força que atinge mais do que uma onda do Havaí e engloba tudo. E enriquece a alma.

Houve muitas vezes quando restou como lembrança apenas um encontro que travei durante a viagem realizada. Encontros se fazem com pessoas. Ou com luzes, águas, cores, superfícies, sabores, texturas, sons. Ou movimentos, porque eu adoro trilhar, escalar, nadar — ainda não aprendi a voar, senão adoraria citar.

Nos momentos em que a companhia foi realmente compartilhada, os voos individuais e os modos próprios de absorver a experiência foram determinantes. Cada um com seu cada um criou as condições onde os fluxos circundantes atravessaram simultaneamente ambos. E a satisfação foi plena por isso: em cada um o necessário se estabeleceu como recompensa.

Não tenho pretensões a puritano, então, diria que assemelha-se a uma espécie de clímax simultâneo no sexo.

De algum tempo para cá, as experiências extra muros de casa (minha ou de um familiar) têm sido tão escassas que ficaram meio perdidas da lembrança. E, em função de uma urgência desmedida da alma, adotei os voos virtuais para dar conta do que se apresenta à razão ou à emoção. E os meios, assim como os instrumentos, foram as imagens e os textos. Para os alados deixei a minha confissão das angústias.

Ainda gosto de encarar meus próprios desafios. Mas esse último período tem reservado outro movimento e precisei aglutinar questões daqueles que incluí como do meu mundo. Então, nada a reclamar. Vou lá e limpo, lustro e reafino este instrumento débil, e parto para desobstruir as cacofonias e construir sinfonias com os movimentos propostos pela vida.

Só assim consigo ser. E por ser um momento em que me permito o entendimento de que este é um encontro que vale a pena, me promovo plenitude e ela me aperfeiçoa.

Wellington de Oliveira Teixeira, entre 23 e 24 de junho de 2014.

* Agora é apenas nota de rodapé: …no meu mundo um troço qualquer morreu, num corte lento e profundo entre você e eu. E ficou tudo fora de lugar… (Cazuza — O nosso amor a gente inventa (estória de amor))

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