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23 de jun. de 2014

Desapropriando a própria imagem

Máscaras, criado por Wellington de Oliveira Teixeira em 22-06-2014
Máscaras*, criado em 22-06-2014.

A coragem de viver:
deixo oculto o que precisa ser oculto e precisa irradiar-se em segredo.
Calo-me.
Porque não sei qual é o meu segredo.
Conta-me o teu, ensina-me sobre o secreto de cada um de nós.
Não é segredo difamante. É apenas esse isto: segredo.
E não tem fórmulas.

(Clacire Lispector — Água Viva, p.59)


Todos já falaram de máscara — concordo. — das artes teatrais nas quais somos os figurantes e ela a protagonista. Afinal, a própria identidade nos é desconhecida.

Esse antagonismo — que se precipita e deságua das alturas de desejar um si mesmo — é não perceber ou aceitar a própria multiplicidade estrutural ou a pluralidade na singularidade. As muitas possibilidades existentes em cada um ou essa inevitável esquizofrenia.

As aceitáveis justificativas sociais, a farsa do cidadão modelo. A aparência é o palco pouco antes do fechar as cortinas e os bastidores assumirem, como sempre.

Aprovação social atrelada aos círculos familiares, profissionais ou de amizades é o motriz de todo tipo de aparato maquiador da vivência. O refinamento extremo do fingimento, em outras palavras, a cortesia da hipocrisia nas relações. As pequenas ou grandes omissões da própria motivação sempre covardemente oculta pela tão bem vinda interface descaracterizadora. Personas que se instauram como personalidade ou disfarces adotados pela impossibilidade de encarar o medo estonteante do suicídio social.

Máscaras não aderem ao rosto, à alma. São inflexíveis as contraposições ao fluxo do ser e estar pleno que impedem o afirmar-se: é fundamental impedir a transitoriedade e a flexibilidade no modo com que nos identificamos, a verdadeira oferta de cada encontro. Por favor, entenda: um nadador apenas o é quando na substância líquida. Depois que inventam o desportista, sua prática se torna a sua máscara e o domina e o engaja a uma forma modeladora de vida.

Toda escolha ou determinação de papel é apenas máscara aderente: até mesmo a maternidade. O fluxo existe, a conexão é plena. Isso é o que basta na relação. Tudo o mais são costumes, formas temporárias de agir — que, comprovadamente, em cada época ganha formatos diferenciados.

Mas as máscaras permitem interpretações variadas. As artes nos ensinaram que, como elas, são uma fala cifrada que pode ser exposta e ocupa o lugar do não dito: máscara não é maldita; é o mal dito, aquilo que fica encoberto. Toda obra-prima é o que foi oculto em grau máximo, do sofrimento e dor à paixão e alegria — tudo o que permitiu o surgimento de um artista.

Como tudo, a máscara também tem faces. Seu lúdico uso recreativo, como a brincadeira de heróis, é prova de lucidez. Aquele disfarce necessário para ser o mocinho de verdade e vencer o mal na calada da noite. O aprendizado do como, quando e onde permitir-se.

O mesmo não pode se dizer do disfarce do terno no calor tropical, o enchimento das lingeries, apliques e tudo o que é fashion (ou retrô). O não você diário, a sobredeterminação de um modo de ser que desapropria a própria imagem. Aquilo que com sua repetição produz o assujeitado, o reacionário, assim como todos os que não ousam tomar a vida nas próprias mãos: apenas uma máquina que o sistema mantém pois é produtiva e reprodutiva da escravidão.

Wellington de Oliveira Teixeira, entre 22 e 23 de junho de 2014.

* Jung avalia na Psicologia Analítica que carregamos psicogeneticamente um inconsciente que é coletivo, herdado dos ancestrais mais primitivos, perpetuado em cada nova geração. Persona, animus ou anima, sombra e Eu são os estágios do desenvolvimento, seus arquétipos universais.
  • Persona ou máscara são os vários papéis sociais, as relações intrapessoais ou interpessoais. Liga-se à habilidade de convívio e atuações sem se estratificar ou adotar definitivamente uma.
  • Anima constitui o lado feminino da psique masculina, o Animus o lado masculino da psique feminina, e seu desenvolvimento continuado permite relacionamentos mais plenos.
  • Sombra refere-se a parte evolutiva e mais profunda. Mais poderoso — e potencialmente mais perigoso — dos arquétipos: os ferozes e vorazes ímpetos animais do ser humano que precisam ser domesticados no indivíduo.
  • Eu como principal arquétipo organiza a personalidade humana, unificando e harmonizando os demais, atuando nos complexos e na consciência.
O objetivo de qualquer personalidade é o estado de autorrealização e de conhecimento do seu próprio Eu.

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