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5 de jun. de 2014

A pele que cobria o monstro

Monstro atrás da pele, criado por Wellington de Oliveira Teixeira em 05-06-2014.
Monstro atrás da pele, criado em 05-06-2014.

Se buscarmos um paralelo para a lição da teoria atômica […]
[devemos nos voltar] para aqueles tipos de problemas epistemológicos com os quais já se defrontaram,
no passado, pensadores como buda e Lao Tsé em sua tentativa de harmonizar nossa posição
como expectadores e atores no grande drama da existência.

Niels Böhr (Nobel de Física, 1922) — Atomic, Physics and Human Knowledge, p.20 (*)

Todo rótulo é um crime contra o arbítrio por ser uma tentativa de usurpar a liberdade do outro, o que o torna livre: essa transmutação sui generis à humanidade.

Quantos tons de cinza você acha que eu deveria contar para dar conta da realidade. Você certamente já percebeu que nada é preto no branco (mesmo que você seja um adolescente idealista e tomado por uma causa!).

As vivências, em si, como letras no papel, são apenas um conjunto de símbolos que formam palavras. Mas cada uma não vale por si, depende do seu contexto, E contextos são — com texto ou não — indissociáveis de uma apreciação ou avaliação. Uma página em branco pode significar um 'não sei o que dizer'.

Em determinado momento você crê em algo. O que constitui em você essa crença está para além do que racionalmente você possa controlar: milhares de experiências que possuem um corpo como suporte — interagindo com as [d]eficiências que lhes são inerentes e estruturantes.

Ou você vai me dizer que cegos ou surdos ou paraplégicos constituíram o seu saber viver do mesmo modo que alguém que não possui essas questões para enfrentar? Posso questionar também com relação aos que constroem sua vida com base num lar amoroso e cuidadoso ou degradado por todo tido de má relações ou de drogadição.

Está mais do que provado que nenhuma estrutura, em si, é determinante do que alguém vai ser, crer ou viver. Há influência, e possivelmente forte, mas não é garantido porque simplesmente não é possível prever. Por mais que seja uma tentação acreditar, nada — absolutamente nada da ordem física ou emocional — pode ser determinante da construção de um ser.

Não sei se um monstro toma o corpo das pessoas ou se elas apenas retiram a pele que o cobria — me recordei da metáfora 'lobos em pele de cordeiro' —, mas todas as pessoas quando se transtornam se transformam diante de determinadas situações, especialmente das indeterminadas ou das que as surpreende.

Pense bem: todas! Isso soa muito mal. Provoca náuseas. É duro de tragar. Mas é a verdade. Variamos na escala da realidade: nem bons nem maus — simplesmente humanos.

Considerando as relações cotidianas, alguns são mais eficientes em cuidar da questão, alguns mais capazes de manter enjaulada a vilania, muitos deslizam ao sabor das intempéries ou das bonanças. E esse muitos somos eu e você. Não creio que o mal nos constitui, tampouco somos feitos apenas do que é bom. O custo que o dom do arbítrio exigiu foi esse: sermos estruturalmente neutros.

Repare que até aqui não citei espiritualidade (por favor, não se precipite com as críticas!), a estruturação genética e a apropriação individual de uma psiquê carregam esse fardo. Exatamente o dos vocábulos. Coloque o seu nome à esquerda, à direita os adjetivos e classificações. Isso mesmo, se dicionarize. Faça isso quando estiver alegre, o mesmo quando triste e a seguir com raiva. A transmutação que você sofrerá ainda não será suficiente para mostrar o quanto você pode deslizar nos significados que você mesmo entende como definidores de sua personalidade ou o seu si mesmo.

Imagine as seguintes relações: você + um desafeto; você + o amor de sua vida; você + seu mentor preferido; você + um criminoso. Você = você? o você é o mesmo que o seu ideal (Você)?

Mesmo que tente se dizer o tempo todo 'Vou Ser!', não é apenas improvável, é algo impossível de se obter porque em sua constituição está a escalaridade e a ressignificação. Explico:

— você pode ser mais ou menos bondoso, triste, saudável etc.;
— você pode ser outro de acordo com o encontro que efetua: encontros nos definem e espelham quem somos nos momentos de sua duração.

Depois a imagem borra, a estrutura se desfaz, você retorna à estaca zero. Outra oportunidade. Tudo de novo.

Todo novo, decida-se, escolha, lute e conquiste o que tornar-se.

Não é o simples 'fulano é bom e sicrano é mal' e, por mais que você queira rotular — porque isso enganadoramente parece facilitar a vida —, não basta. É o trilhar um aperfeiçoamento pessoal, de descoberta em descoberta o que chamamos de amadurecer. E a incongruência dessa questão é que ninguém se torna melhor porque maduro, mas porque decidiu — vez após vez — por dar um determinado direcionamento à vida e foi capaz o suficiente de manter a rota, mesmo com tantos desvios promovidos pelos obstáculos encontrados.

Viu? Livre arbítrio, não arbitragem. Não seja juiz de ninguém, nem de você mesmo.

Wellington de Oliveira Teixeira, em 05 de junho de 2014.

* Em relação à questão epistemológica, sugiro a leitura do texto de Akiko Santos (Laboratório de Estudos e Pesquisas Transdisciplinares — UFRRJ): Complexidade e transdisciplinaridade em educação: cinco princípios para resgatar o elo perdido. Disponível no Scielo:
http://www.scielo.br/pdf/rbedu/v13n37/07.pdf/

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