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16 de jul. de 2017

Continuum inimaginável

Transposição Contínua, criado por Wellington de Oliveira Teixeira em 16-07-2017.
Transposição Contínua*, criado em 16-07-2017.

O corpo pleno sem órgãos é produzido como Antiprodução, isto é, só intervém como tal para recusar toda tentativa de triangulação, implicando uma produção pelos pais. Como é que vocês querem que ele seja produzido por pais, ele que testemunha sua autoprodução, seu engendramento a partir de si mesmo?
E é sobre ele, lá onde ele está, que o Numen se distribui e que as disjunções se estabelecem independentemente de toda projeção.
Sim, eu fui meu pai e eu fui meu filho. "Eu, Antonin Artaud, eu sou meu filho, meu pai, minha mãe, e eu".
O esquizo dispõe de modos de marcação que lhe são próprios, porque dispõe primeiramente de um código de registro particular que não coincide com o código social, ou que só coincide para fazer sua paródia. O código delirante, ou desejante, apresenta uma extraordinária fluidez. Poder-se-ia dizer que o esquizofrênico passa de um código ao outro, que embaralha todos os códigos, num deslizamento rápido, segundo as perguntas que lhe são feitas, não dando nunca a mesma explicação, não invocando a mesma genealogia, não registrando da mesma maneira o mesmo acontecimento, até mesmo aceitando, quando lhe impõem e ele não está irritado, o código banal edipiano, pronto a re-entulhá-lo com todas as disjunções de que este código foi feito para excluir.

(Gilles Deleuze e Félix Guattari — O anti-édipo, p.30-31, destaque meu)


Por melhores que sejam os palpites — já que nada mais são que isso — há um obstáculo imenso a ser transposto até que consigamos definir a constituição de um ser. Certamente não estou me referindo à biologia básica ou à química estrutural, mas esse algo que escapa ao aprisionamento do corpo, flutua ou estabelece uma relação que alcança um certo grau harmonioso com ele.

As neurociências nos trouxeram perspectivas muito interessantes a respeito do funcionamento do cérebro e sua produção de uma percepção, distinta, exclusiva e pessoal: o mundo em si de cada um.

No entanto, por melhores as lógicas, os experimentos, as filosofias ou místicas, continuamos emaranhados diante dessa impotência própria, já que o ser se mantém inacessível aos esclarecimentos. É como se alguém colocasse diante de um leigo o conjunto completo de peças que, se reunidas corretamente, montam um objeto complexo qualquer. As infinitas tentativas vão gerando miríades de outros e surpreendem, ao mesmo tempo em que frustam: ainda não há noção exata do que se quer construir.

O experimento, esse jogo de tentativas e quase erros (cada tentativa constrói algo, também, mesmo que não o que procurávamos), vai trazendo novos detalhes, novas perspectivas. Aprendemos. Registro isso como ponto fundamental, no meu entendimento, da vida.

Há um outro aspecto que também fundamenta minhas elucubrações: há prazer no percurso. Somos capazes de vibrar com os avanços, com as barreiras rompidas. Uma emoção por ter, mesmo que por uma fração de segundo, ultrapassado os aprisionamentos. Sim. Somos capazes de vislumbrar, como um relâmpago que ilumina o breu. O quê não sabemos. E não importa, nessa etapa.

E essa reunião de aprendizado e prazer nos projeta, nos impulsiona, impede a paralisia e, por outro lado, nos recorda que o que há é ainda insípido, pequeno, um quase nada. Mas — perceba a importância disso — só por ter ultrapassado o nada, é suficiente para fundar um mundo, esse seu mundo individual, pessoal, exclusivo e com potencial para infinito.

Permitam concluir, sem de fato fazê-lo. Tornar-se, esse continuum inimaginável, com todas as desarmonias que promove em seu processo, pode ser o único objetivo para o que denominamos vida. E, qualquer que seja a expansão que consigo construir para esse conceito, sempre me surpreendo por tentar alcançar um pouco mais. Ainda sonho com constituir um mundo que possa ter compartilhada a sua essência e estabelecer o impossível (até agora!): um encontro pleno.

Wellington de Oliveira Teixeira, em 16 de julho de 2017.

* Para quem não tem familiaridade com o movimento que questiona o pensamento manicomial e o psicanalítico, de fundação do ser na família (triângulo pai, mãe, filho), esse trecho que cita o gigante da literatura Artaud, declarado como esquizofrênico, como exemplo dessa construção de Ser que ultrapassa as determinações sociais, que questiona a preponderância de uma forma de subjetivação que força mas não consegue dar conta do que é ser um ser.
Uma certa elegia aos escapes ou fugas a esta produção. Ainda resta a questão de como poder evitar o aprisionamento, o não ser enquadrado por este sistema que segrega e recolhe a manicômios quaisquer formas de ser ou estar que não se enquadrem, que não se engessem, que ousem o inesperado, o indefinido.
É, de certa forma, uma afirmação de que é possível se constituir um modo de ser singular e, por outro lado, um chamado para um enfrentamento aos modos confinativos e aprisionadores.

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