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1 de jul. de 2017

Inexpressíveis ondulações

Ondulações criado por Wellington de Oliveira Teixeira em 30-06-2017.
Ondulações *, criado em 30-06-2017.

As letras datilografadas estavam meio apagadas. O estilo era um eco do meu, porém lá no passado, uma sensação de quem eu era. Não era mais a minha escrita; era a escrita dele, do garoto de então.
Terminada a leitura, enchi-me das cautelas e das esperanças dele.
"
Eu sabia o que estava fazendo!", disse ele. "No seu século XXI, cercado pelas autoridades e pelos rituais, está tudo engatilhado para estrangular a liberdade. Não consegue enxergar? O plano é fazer seu mundo seguro, não livre." Ele viveu sua história, sua última chance. "Meu tempo passou. O seu não."
Refleti mais uma vez sobre a voz dele, o último capítulo. Estaríamos nós, as gaivotas, assistindo ao final da liberdade em nosso mundo?

(Richard Bach — Fernão Capelo Gaivota [nova edição completa, 2015], p.130)


Tenho prazer e sou grato pela forma como me constituí neste meu mundo: as conexões com os elementos vitais se estruturam potentes e não me encanta a ideia ou o desejo de morrer por si mesmo. A Ordem sussurra com inexpressíveis ondulações que se acercam, adejando a minha alma, e que pairam como um sinalizador indicando outros modos, outros campos, outros mundos a experimentar. Até agora, fui deixando para depois. Depois que eu experimentasse mais um ou outro sabor ainda desconhecido, que vivenciasse outra nova conexão e me inundasse com sua beleza e frescor.

Mas tudo se apequena, bastando apenas vislumbrar a ideia da potencia em si, das composições e arranjos de níveis infinitos. E fico a especular o porquê essa vontade de me parir se reduz, dia após dia. Talvez os apelos aos infinitesimais estejam superando os da substantivação.

Os apegos são tão raros. Mesmo havendo tantos pontos de ancoragem, o campo dos sonhos ou das irrealidades traz essa vontade de transformação, em nível de expansão, disso que constituí como o meu eu.

Essa forma está cada vez menos conseguindo conter as forças que vão se acumulando e se manifestando como uma propulsão. Me estranho todos os dias, mesmo naqueles em que efetuo ultrapassamentos efetivos. Fluxos de desejo vão se alinhando e se extinguindo, sem que novos ocupem seu lugar. E isso não me causa vazios, mas a sensação de que deu tudo que tinha que ser dado, se realizou.

Certas proposições de vida ainda resistem, pedem permanência, imanência — e eu, condescendente, aceito. É um referencial que traz prazer, como o de ver crias de corpo e alma se estabelecendo.

O fato de imaginar horizontes não me impede de valorizar o continente, esse espaço contingente, esse corpo e essas vias de acesso a outras percepções contíguas: esse serzinho lindo ao meu lado que, ao sorrir, me recorda — ou tange cordas invisíveis em mim — o que é o belo deste plano da vida. São efeitos simultâneos de brilho de alma, que vazam pelo olhar, ondas etéreas que detém uma teimosia em efetuar o impossível para o físico: o toque.

E me questiono, sem verbalizar: se há incerteza, deve ser porque não se esvaziou, não se completou o ciclo, não se efetuou plenamente. Eu jamais diria falta algo. Não é isso. Não há falta. É um certo extra, um plus, um aditivo que teima se aproximar, seduzir a vontade. Essa força que perpassa os seres e os faz desejar outro dia, outro aqui e agora, um determinado grau de permanência e, só de vez em quando, o de ausência.

Quem sabe?, talvez seja esse diferencial — entre potências do ir e do ficar — que me sustenta no plano estrutural, a dita realidade. Esse mesmo campo de percepção, que se constituiu como um percurso de ser humano, que observo e ouso afirmar digno, ele prossegue. É potente, mas já frágil em seu poder de cooptar minhas fugas para fontes desconhecidas, essas possibilidades que reluto mas, por falta de uma opção fidedigna, digo espiritualizadas, porque não mais coadunam com os reconhecidos referenciais, mesmo os do plano mental.

É um tanto quanto demente o arcabouço que me permite flutuar e, de quando em vez, participar de alguma percepção que não se referencia nas minhas lógicas, nem mesmo as mais potentes. Ganham status de lindos e maravilhosos estranhamentos, capazes de efetuar fluxos que nem sei nomear, e deixo permanecer inomináveis. Não quero submetê-los à racionalização e não quero impedi-los de seduzir a razão, também. Que só efetuem o que é para ser efetuado.

Tentarei fazer um paralelo: são como um flash que irrompe a escuridão e, por um momento ínfimo, me traz a estranha sensação de entender tudo, de estar esclarecido, de saber qualquer porquê. O resíduo promove algumas certezas, direciona o percurso e, também, uma certa nostalgia, um querer a nova experimentação, esse meu flerte com o indizível. Parece que estou esvanecendo um véu, aprendendo a transpor os transparentes invólucros que me estabeleceram isso que estou. Realizo a construção dessa ideia de ser, mas não pela contingência, de uma forma semelhante a que alguns dos referenciais que tomei pelo caminho discorreram e que, à época, assumi mito ou parábola de um estado de mente ou de espírito que, ao esbarrar em uma verdade e, sem ter meios de descrevê-la, recorre a simbolismos.

É bom, até mesmo tentar esse improvável objetivo de conseguir descrever esse processo. E, então, estou indo e, por enquanto, retornando. Prosseguir também é bom; e vou realizando um entendimento diferenciado, que ousa esferas quase sempre encobertas pelo fluxo das supostas certezas, verdades e definições. E isso me encanta.

Wellington de Oliveira Teixeira, em 30 de junho de 2017.

* Esses pensamentos resultariam incompletos, sem a citação de uma das personagens mais intrigantes e estimulantes para mim, o índio Yaqui Don Juan Matus.
"O que parou em você ontem foi aquilo que as pessoas lhe têm dito que é o mundo. Entende, as pessoas nos dizem, desde o momento em que nascemos, que o mundo é assim e assado, naturalmente não temos outra escolha senão ver o mundo do jeito que as pessoas nos dizem que é.
[…] Talvez agora saiba que ver só acontece quando a gente se esgueira entre os mundos, o mundo das pessoas comuns e o mundo dos feiticeiros. Você está bem no meio dos dois. Ontem, acreditou que o coiote havia falado com você. Qualquer feiticeiro que não vê acreditaria o mesmo, mas um que veja sabe que acreditar nisso é estar preso ao mundo dos feiticeiros. Igualmente, não acreditar que os coiotes falam é estar preso no reino dos homens comuns."

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