Pesquisar este blog

24 de mar. de 2016

Incômodo essencial

Aguilhões, criado por Wellington de Oliveira Teixeira em 24-03-2016.
Aguilhões*, criado em 24-03-2016.

— Eu não entendo como você consegue amar um grupo de pássaros que há pouco tentava matá-lo.
— Oh, Francisco, a gente não ama isso! A gente não ama ódio e maldade, claro. A gente tem que praticar e ver a gaivota autêntica, o bem em todas elas, e ajudá-las a vê-lo em si mesmas. Foi isso que eu quis dizer com amor. E é divertido quanto a gente pega o jeito da coisa.
— Eu me lembro de um pássaro jovem e feroz. Francisco Coutinho Gaivota era o nome dele. Acabara de ser declarado Pária, estava pronto para enfrentar o Bando até a morte, prestes a começar uma vida infernal nos Penhascos do Fim do Mundo. E aqui está ele hoje, construindo seu paraíso particular e liderando o Bando inteiro na mesma direção.

(Richard Bach — Fernão Capelo Gaivota, p.90-91)


Pouquíssimas pessoas que conheço esforçam-se diariamente para alcançar um nível superior de vida — em meu entendimento, a correção de atos e atitudes e a compreensão de participar de um universo onde cada um é um mundo único. Mesmo esses, sem prepotência, confirmaram que são visitados por um sentimento de inadequação: seres iluminados culpando-se por não terem alcançado níveis mais elevados — como eu entendia erroneamente.

Demorei assimilar esse incômodo como um instrumento de alerta para desprezar a incompletude: não basta aonde se chegou ou o que se alcançou, tem um novo estágio de vida reluzindo adiante e, mais do que convida, nos seduz para ir ao seu encontro. Enrosquei-me numa espiritualidade da degradação definitiva da vida, até perceber que essa interpretação não contribui para acender a vontade de, passo a passo, melhorar.

Além da afirmação da incapacidade, em seu bojo trazia a desqualificação de nossas capacidades como seres humanos. Política e economicamente aliada a interesses desprezíveis, tornou-se um mecanismo de controle e de apropriação do caminho de cada um. Mascarado como solução miraculosa, despreza as trajetórias individuais, gerando culpabilização, destituindo o ser de sua responsabilidade de constituir-se um ser mais pleno. Se tudo está fora de suas capacidades, nada pode ser feito: o ideal é inalcançável porque está em um outro universo.

Esse incômodo, se definido como culpa, beneficia apenas quem a promove. Proponho, então, uma outra forma de encará-lo. Ele é a capacidade da consciência humana de ajuizar e avaliar criticamente o esforço despendido e os resultados alcançados num trajeto.

Me reporto às oportunidades onde calma e a paz surpreendem ao fim de alguma etapa. Uma sensação como um toque na alma que se torna a sua validação. Algo como 'Você foi capaz, não desista, não paralise. Há mais!'. Assim, por mais exausto por conta dos desafios, você se ergue pra encarar o seguinte; evolui, amadurece e sobrepuja o que um dia acreditou ser impossível.

Desde que nascemos, vivenciamos isso. Superação está na ordem do dia dos seres humanos. O aprendizado de como agir e pensar resultou de não nos determos. O incômodo nos leva àquilo que ainda não alcançamos.

Modifique seu dicionário. Plenitude é ultrapassar o lugar onde se está e conseguir percorrer o espaço que o separa do que está adiante. Acolha o potencial positivo desse incômodo, a perfeição é a justa medida de conseguir se realizar ao alcançar o uso total e estratégico de uma — dentre as infinitas — potencialidades humanas.
Wellington de Oliveira Teixeira, em 24 de março de 2016.

* Uma espécie de lança cuja função é forçar os animais, pela dor, a seguir um certo trajeto. A expressão bíblica 'recalcitrar contra o aguilhão' atualizada assimila-se a 'dar soco em ponta de faca' e carrega o conceito de que fugir da retidão causa dor.
Pelas vias social e íntima, o conceito refere-se à punição legal pela quebra das regras sociais; no foro íntimo (o da internalização das leis), à culpa — consequência do erro produzida pelo tribunal da consciência.
Quero propor uma terceira via, a inquietação que ocorre ao se falhar é um instrumento natural de aprimoramento pessoal. Esse artigo procura trazer essa ideia à tona.

Nenhum comentário: