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21 de fev. de 2016

Na proximidade do irrecuperável

Quase irrecuparável, criado por Wellington de Oliveira Teixeira em 21-02-2016.
Quase irrecuparável *, criado em 21-02-2016.

Você poderia me ensinar a voar assim?
— Claro, se você quiser aprender.
— Quero. Quando podemos começar?
— Agora mesmo, se desejar.
— Eu quero aprender a voar daquele jeito – disse Fernão, com uma estranha luz brilhando em seus olhos. — Diga o que tenho que fazer.
Chiang falou devagar, observando com bastante atenção a gaivota mais jovem.
— Para voar tão rápido como o pensamento, para ir a todos os lugares que existem — respondeu –, você tem que começar sabendo que já chegou lá…
O macete, de acordo com Chiang, consistia em Fernão deixar de se considerar preso dentro de um corpo limitado, com 1,10 metro de envergadura de asa e um desempenho que poderia ser marcado com uma carta de navegação. O macete era saber que sua verdadeira natureza vivia, tão perfeita como um número não escrito, em toda parte e ao mesmo tempo no espaço e no tempo.

(Richard Bach — Fernão Capelo Gaivota, p.56)


A inveja gera o ser que não se é — um simulacro. Provavelmente, você vivenciou em sua infância aquela tradicional dualidade entre o ser o valentão e o ser o nerd, ou outra oposição semelhante. Se você evoluiu, entendeu que ameaçar alguém não é uma questão de poder agredir, é mais relacionado a ser, ao expressar-se pleno.

Ser é mais forte e efetivo do que o desejar ser porque, quando algo torna-se inalcançável como projeto, a inveja de quem o consegue sem esforço pode tornar-se uma obsessão. Quando imaturos, dificilmente conseguimos elaborar tal fato — ainda quando as circunstâncias são desfavoráveis. Lidamos da melhor maneira possível com o que nos foge ao controle, encaramos o que nos é possível no momento.

A natureza estabelece geneticamente duas respostas em cada corpo: ataque ou fuga. Não houve nenhuma derivação até que o ser humano ultrapassou a barreira do natural, estabelecendo uma nova marco, o da estratégia. Diferentemente dos animais predadores, que dominam a rotina de suas presas, somos capazes de constituir práticas, instantaneamente, baseados apenas no acúmulo de informações, mesmo que não repetitivas. Isso nos tornou os seres mais perigosos da face da terra.

Fomos além. Enquanto animais atingem apenas o físico, podemos destruir o que habita o interior do outro, mesmo de quem é fisicamente mais forte. Inventamos o sarcasmo, as humilhações e ultrapassamos as agressões. O uso da espionagem e da trapaça nos constituiu como seres que, quando não obtém algo pelas próprias capacidades, impedem que o outro o alcancem. Sorrindo para eles.

Um novo patamar de avaliações se estabeleceu e nos levou a julgar o caráter dos outros baseados no de origem: todos são capazes de oferecer seu pior aos outros. Após a transposição dessa linha divisória, o sagrado que havia na honra, na palavra e na promessa foi transgredido, destituído de sua capacidade de valor em si.

Depois nos tornamos simulacros, simuladores de humanos, seres cuja essência se reformula somente por interesses. Praticamente destituídos da humanidade, tentamos reencontrar um retorno, um modo de restaurar a potência do ser pleno. Ainda bem, a plenitude é algo sempre em construção, não algo pronto e acabado a ser comprado em antiquários. Exige um preço. E este é a reconstrução dos valores em si. Isso não significa restaurar os antigos — foram eles que nos enganaram e nos elevaram a esse patamar de coisas —, mas restaurar a potência de ser feliz com o que se é e não com o que o outro define ser o bom ou o melhor para nós mesmos. Mais. Entender que o diferente o é em si. E deve continuar a sê-lo.

Estabelecer como uma luta válida e agradável ajudar a construir a plenitude do outro é o novo desafio que precisamos encarar. Talvez assim, consigamos gerar aliados fortes o suficiente para nos auxiliarem em nossa própria tarefa de ser o melhor que podemos. Seres plenos e felizes podem tornar o mundo muito melhor que seres dominados, constrangidos, destituídos de sua potência como ser. Só não entende isso quem se perdeu de forma muito próxima do irrecuperável.

Wellington de Oliveira Teixeira, em 21 de fevereiro de 2016.

* Algumas pessoas abrem mão da admiração — um elemento que nos promove a vontade de de mirar num possível melhor e na possibilidade de ultrapassamento —, tomados pela inveja, sentimento que leva a querer destruir o elemento que lhe causa um sentimento de inferioridade. Um leva a uma rota de experimentações próprias e descobertas; o outro, a um abismo dentro de si, que atua como prisão e apaga a visão do que e de quem se é. Não se vai de um a outro repentinamente. No caso da inveja, é mais como um deslizar, só que em ladeira abaixo, até um ponto onde não parece mais haver retorno.

2 comentários:

Anônimo disse...

Bom texto! Às vezes a fronteira entre a inveja branca (a admiração) e a negra é bem incerta.
Só não entendi a seguinte passagem: "Ser é mais forte e efetivo do que o desejar ser porque, quando algo torna-se inalcançável como projeto, a inveja de quem o consegue sem esforço pode tornar-se uma obsessão."

Wellington O Teixeira disse...

Pessoas que desejam ser como outras e não conseguem, muitas vezes passam a querer destruir o objeto da inveja. Pior, tentam impedir que outros o alcancem.