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3 de dez. de 2016

Práticas instantâneas e legítimas de expressão

Signos da atração, criado por Wellington de Oliveira Teixeira em 26-11-2016
Signos da atração, criado em 26-11-2016.

Os signos mundanos são frívolos, os do amor e do ciúme, dolorosos; mas quem procuraria a verdade, se não tivesse aprendido que um gesto, uma inflexão, uma saudação devem ser interpretados? Quem procuraria a verdade se não tivesse inicialmente experimentado o sofrimento que causa a mentira do ser amado? As ideias da inteligência são muitas vezes 'sucedâneos' do desgosto. A dor força a inteligência a pesquisar, como certos prazeres insólitos põem a memória a funcionar. Cabe à inteligência compreender, e nos fazer compreender, que os signos mais frívolos da mundanidade correspondem a determinadas leis e que os signos dolorosos do amor correspondem a repetições.
Assim aprendemos a nos servir dos seres: frívolos ou cruéis, eles 'posaram diante de nós', eles são nada mais do que a encarnação de temas que os ultrapassam, ou pedaços de uma divindade que nada mais pode contra nós.
A descoberta das leis mundanas dá um sentido a signos que se tornariam insignificantes tomados isoladamente.

(Gilles Deleuze — Proust e os Signos, p.23-24, destaque meu)


A vida de alguém só inicia quando este começa a destruir as imposições, a encarar os desafios para superá-los. Mas, quase um contrassenso, responsáveis e educadores não gostam do que representa a palavra independência.

Que todos tenham motivos próprios para adotar algo ou não, e aprenda a justificar sua escolha, é inteligível. Porém — talvez por terem sido sistematicamente ensinados a adotar, de forma acrítica, a reprodução dos discursos dos antepassados — a maioria destes responsáveis tornou-se o principal impeditivo às transformações e à individualização.

Com a justificativa de proteção, erguem uma barreira que impede os problemas e, por conta disso, enrijece quase todo aperfeiçoamento e a criação de novas práticas. Sem problemas, não se aprende a inventar e a desenvolver soluções próprias.

Com alegria, observo uma crescente parcela, dentre eles, que motivou-se a encarar essa questão: o desafio de repensar e de reavaliar os elementos fundadores de suas práticas e de encontrar os que se sustentam na atualidade e em que nível.

É fácil perceber em mim a repulsa pelas instituições que incentivam decorar respostas preestabelecidas, ao invés de promover a capacidade da crítica. É que isso acarreta uma etapa a mais no processo de desenvolvimento pessoal: é preciso desconstruir as padronizações, rotulações, discursos — conceitos e preconceitos a que fomos submetidos — antes de construir os arcabouços de nossa individualidade, este modo exclusivo e próprio de ser e estar no mundo, que é um processo natural ao ser humano.

A infância nos brinda sistematicamente com as melhores noções de como encarar a vida: a vivência expressiva do momento. Percebe-se que, mesmo que impulsivamente, as crianças vão aos desafios e os encaram; aprendem com as satisfações e as dores resultantes, e seguem, após riso ou choro, em busca de novos.

Há uma expressão que foi capaz de traduzir para mim esse movimento livre e expansivo que ocorre na infância: o devir criança, as práticas instantâneas e legítimas de expressão dos reais sentimentos e pensamentos – inclusive de amores e ódios, fraquezas e fortalezas — em cada encontro.

Por mais que os discursos valorizem a verdade, as práticas de ensino (em casa, na escola, na igreja ou na rua) nos levam às falsidades e, invariavelmente às representações. Aparências têm mais valor social e dá status a quem as adota. Não é de se admirar o fato de que as relações sejam estabelecidas sob esse viés; que o desejo de expressividade seja enjaulado, qualificado como perigoso; que os que apontam seu dedo para a ferida sejam identificados como subversivos e relegados ao escanteio. Na realidade, evitamos os espelhos que nos refletem fielmente, que nos forçam encarar o aterro com acúmulo de elementos tóxicos, nossos lixões internos.

Para superar recalques, somatizações, baixa estima e outras consequências desse modo de viver, precisamos de uma felicidade instantânea (sempre há uma, em preço promocional), a que resolve tudo, sem dar trabalho ou exigir esforço pessoal.

A vida passa, enquanto isso. Uma hora, sem nenhuma das características reais originais, nenhum rosto resistiu, só a máscara. E mesmo assim, sabendo da falência desse processo, já que foi 'obrigado' a passar por ele *, você o reproduz e exige que outros o façam também. Se me pedissem uma avaliação, essa é a maior drogadicção da atualidade, que se mantém pelo reforço e pela sustentação da palavra moralidade.

Wellington de Oliveira Teixeira, em 03 de dezembro de 2016.

* A expressão 'bom selvagem' foi o modo que Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) usou para questionar as práticas modernas. Filósofo, teórico político, escritor e compositor autodidata suíço, ele promoveu a metáfora do 'Contrato' social questionando os modos de justiça e a liberdade encontrados na natureza, em um meio social.
A humanidade buscou socialização (sozinho é mais fácil morrer) para sobreviver; produziu cultura para conservar seu modo de viver. Das pequenas comunidades familiares às novas formas de ordenação social e política, a obediência irrestrita (submissão integral à coletividade ou a um Estado) pode tornar-se um elemento determinante da restrição das liberdades individuais (livre-arbítrio) e da igualdade social. O que fazer?
A proposta foi substituir-se a liberdade natural (irrestrita, mas subordinada ao poder do mais forte) pela criação de um pacto social: somente garantindo a liberdade de todos é que as liberdades individuais serão também preservadas, equilibrando ordem e justiça.
Um exemplo de não exclusão dos desejos e práticas individuais é o do direito de fumar. Este pode prejudicar um não-fumante, que em um recinto fechado inala toxinas involuntariamente. Se houver um acordo de todos, restringe-se o fumo a locais adequados. Conserva-se a liberdade tanto de fumantes quanto de não-fumantes e ninguém perde sua individualidade.
Evidentemente, há muito mais que isso. Mas essa abordagem demonstra que, havendo vontade política e social, é possível o desenvolvimento de uma Educação para o respeito e a possibilitação e construção de modos diferenciados de ser e estar no mundo, baseado na cidadania.
(uma breve introdução ao tema encontra-se em no verbete Jean-Jacques Rousseau da Wikipedia)

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