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17 de jul. de 2016

Por um troco qualquer

Cortina de fumaça, criado por Wellington de Oliveira Teixeira em 16-07-2016.
Cortina de fumaça *, criado em 16-07-2016.

Quando eu era pequeno eu achava a vida chata como não devia ser:
os garotos da escola só a fim de jogar bola e eu queria ir tocar guitarra na TV.
Aí veio a adolescência e pintou a diferença, foi difícil de entender.
A garota mais bonita também era a mais rica, me fazia de escravo do seu bel prazer.
Quando eu saí de casa minha mãe me disse:
'baby, você vai se arrepender, pois o mundo lá fora num segundo te devora'.
Dito e feito, mas eu não dei o braço a torcer.
Hoje eu vendo sonhos, ilusões de romance, te toco minha vida por um troco qualquer:
é o que chamam de destino, e eu não vou lutar por isso — que seja assim enquanto é!
(Lulu Santos — Minha vida)


O efeito torcida atua como a perfeita ilusão da harmonia, conduz momentaneamente a um vínculo que produz a sensação de pertencimento, de igualdade, de união. Para bem ou para mal, é efetivo. Sem crítica capaz de desmontar os contextos criados para trazê-lo à tona, tornamo-nos reféns de seus efeitos. Dentre eles, as manipulações que visam padronizações, que tornam as diferenças entre as pessoas em oposições com rótulos superficiais — héteros e outros, direitas e esquerdas, moral e imoral. Todas visam capturar grupos de indivíduos para serem utilizados como fantoches para poderes e interesses nos quais nunca serão incluídos ou participarão.

Tornou-se fundamental ao interesse de algumas elites desarticular ou desqualificar qualquer instrumento de capacitação para a crítica, opiniões divergentes ou minorias insurgentes. A massificação depende de homogeneização: todo mundo veste, fala, age e pensa igual. Se não tá na moda e é novo, não presta. Simplesmente usar o medo de ser um excluído como poder de convencimento para a adoção de suas ideias e práticas.

O mundo midiático atual produz incessantemente a realização dos interesses de poderosos conglomerados internacionais. Em nível tecnológico profissional a propaganda de manipulação estabeleceu modos de interferência mental que poucos escapam. Bombardeados diariamente com frases de impacto que não se sintonizam com o conteúdo que carregam, muitos ignoram o prejuízo que isso acarreta. Da divulgação de produtos reluzentes (mas contaminados com agrotóxicos) a boatos com aparência de fatos, estamos enredados numa teia de interesses alheios aos nossos, geralmente produzidos por quem pode controlar os políticos e a imprensa.

O efeito cortina de fumaça é amplamente usado na fase político-social atual. Este velho truque, utilizado por poderes constituídos ou paralelos, consiste em uma rede de produção e divulgação de falsidades ou de eventos para retirar a atenção de fatos importantes. Ele ganha importância na conquista de subjetividades: seu pensamento e o meu, sua prática e a minha, que estão em leilão para quem for mais hábil no convencimento.

As ações em prol de crítica, de qualidade de vida e de níveis autônomos de coletivização comunitária tornaram-se raras. Então, a resistência aos movimentos de desapropriação da vida precisa buscar e encontrar novas formas de expressão. Coletivos precisam se constituir como instrumento prático-pedagógico (vivências que ensinam) de critica, denuncia, defesa de interesses amplos — isso é efetivo e precisa ser incentivado.

As redes sociais possibilitaram modos de interconexão um pouco mais democratizados, mas muitos ainda carecem de instrumentação para o seu uso: a pedagogia crítica precisa ser a tônica, não apenas uma reação às manipulações; a mobilização como método precisa estimular a horizontalização das ações; os pequenos equipamentos de comunicação capazes de capturar e editar imagens, transmitindo-as instantaneamente devem habilitar qualquer pessoa a tornar-se um propagador de ideias. Como tudo, terá usos com finalidades opostas, sua validade está em retirar a apatia do cenário.

A fase de grandes e reais lideranças pode ter acabado com a produção midiática dos salvadores da pátria — os marionetes a serviço da ideologia do enriquecimento sem fim e do controle social. Só na construção do pensamento crítico se efetivará modos distintos e eficazes de apresentar o que, o porquê e o como transformar na sociedade de modo a permitir que todos tenham a sua oportunidade de expressão, sem prejuízo da do outro. Concordante ou discordante, todos devem se apropriar dos modos diretos de expressão. Nenhuma voz deve ser calada. Nenhuma expressividade deve ser impedida nem assumida, se estritamente necessário, apenas mediada: o outro é apenas mais um eu que não deve se perder por um troco qualquer.

Wellington de Oliveira Teixeira, em 17 de julho de 2016.

* Cortina de fumaça é uma nuvem espessa de fumo capaz de bloquear a visão. Figurativamente, correr a cortina sobre um fato é a ação de esconder ou omitir algo, visando disfarçá-lo. A atuação por detrás da cortina visa dirigir um negócio, uma intriga, sem se comprometer ao figurar nela.

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